sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Eu daria tudo que eu tivesse pra voltar aos dias de criança


 

 

 “Eu daria tudo que eu tivesse pra voltar aos dias de criança” (Ataulfo Alves)

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

 

Assim como o grande Ataulfo Alves, muitas vezes também tenho o desejo de voltar aos dias de criança. Porém, voltar aos dias de criança só seria possível acionando a memória, deixando-me guiar pelas asas da saudade ou num filme, como o “De volta para o futuro”. Como não tenho a capacidade de “voltar ao futuro”, vou voltar aos belos e inesquecíveis anos da minha infância e garimpar, no filão das recordações, algumas reminiscências dos melhores anos da vida - e tentar tanto quanto possível revivê-las no mundo mágico da imaginação. 

Deixando a poesia e os desejos de lado, é bom frisar que aquilo que vivemos não volta mais. Se tentarmos repetir as nossas experiências, poderemos nos frustrar, porque nunca serão iguais pelo simples fato de que nós não somos mais os mesmos. É como ensinou o filósofo pré-socrático, Heráclito de Éfeso: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tampouco o homem!”.

Estamos sempre em contínua mudança. Cada dia nos tornamos pessoas novas e, apesar de não percebermos, já somos pessoas diferentes do que fomos no dia anterior. Aquilo que nos é agradável, nós queremos que se prolongue no tempo e que nunca termine. Outro dia, uma menina me disse que não queria crescer, queria ficar para sempre criança. Ela deve estar vivendo uma infância muito feliz e sabe que é feliz, mas vai crescer e deixará de ser criança, querendo ou não.

Machado de Assis publicou um conto com o título “A Segunda Vida”. Usou sua prodigiosa imaginação para descrever como poderia ser a vida de uma pessoa, se ela voltasse a nascer com a experiência que tinha quando morreu. Com a categoria que Deus lhe deu, narra a história de um homem que foi conversar com um padre, ou melhor, com um monsenhor. O homem começou contando que tinha morrido aos 68 anos, mas que foi reenviado “à terra para cumprir uma vida nova”. Ele só aceitou voltar com a condição de que devia nascer experiente. Segundo suas próprias palavras, sua nova vida estava sendo só aborrecimentos e frustrações:

— “Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creio que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas”.

Ao reler este conto, recordei uma maravilhosa experiência que tive em maio de 2012, no rio Tapajós, entre os indígenas Munduruku, na comemoração dos 100 anos da Missão São Francisco do rio Cururu. Foi organizado um mutirão de visitas missionárias às aldeias dos outrora “cortadores de cabeças” antes do encerramento das comemorações do centenário. Foram recrutados 35 missionários, entre padres, religiosos/as e leigos, e enviados dois a dois. Tive como companheiro, o meu amigo Jonas Pinheiro, de Curitiba. Visitamos as aldeias Katon, no rio Kabitutu, e Sai Cinzas, à margem esquerda do Tapajós. Depois seguimos até a Missão São Francisco, onde haveria as comemorações finais. Ao sairmos da aldeia Sai Cinzas pelas 7h da manhã, encontramos três jovens índias banhando-se no rio. Uma delas estava com uma criança nascida na semana anterior, “ensinando” a frágil criaturinha a nadar. Segurava-a nos braços e a embalava na água. Ela me pediu para dar uma bênção para o “anjinho” ainda tão tenro. Após abençoá-lo, perguntei se não era arriscado trazer a criança nesta idade para o rio. Disse-me que a criança tem que aprender a gostar do rio desde o dia do nascimento. Fiquei com aquilo na cabeça.

Uma hora mais tarde chegamos à aldeia Boca das Piranhas, situada à margem direita do Tapajós. Paramos para pegar dois missionários. Junto à barranca do rio, havia seis crianças brincando na água com uma alegria exuberante. Pelo tamanho, davam a impressão de que tinham entre 2 e 3 anos ou 4 no máximo. Pareciam pequenas lontras, tal a agilidade: subiam numa árvore, pulavam no rio, nadavam até o barranco, saíam e repetiam ininterruptamente, as mesmas ações rindo e gritando. Transmitiam uma felicidade contagiante. Um gaúcho diria: “Estão mais faceiras do que lambari em sanga!” A alegria e a felicidade daquelas crianças me deixaram impactado e renovado. A energia positiva, ali recebida, me ajudou a aguentar as mais de 9 horas de viagem na voadeira, rio acima.

Foram longas aquelas horas sob o sol, sentado, ou melhor, meio “acrocado”, porque o banco era baixo. Aos poucos foi dando uma dor nas costas, mas a imagem de felicidade daquelas crianças, tão vivazes, fez com que eu recordasse alguns fatos encantadores da minha infância, sobretudo de banhos e pescas no rio Tigre, em Nova Londrina, onde nasci.

Como era gostoso e tentador ir tomar banho no rio nos tempos de infância e adolescência. O pai e a mãe não nos deixavam ir, a não ser que um dos irmãos mais velhos fosse junto. Tinham receio de que nos afogássemos. Nós fugíamos e íamos. Se chegássemos em casa com o calção molhado: a surra era certa. E quantas vezes apanhei por causa disso!

Como na vida é possível dar um jeito em quase tudo, arrumamos um jeito de não chegar em casa com o calção molhado. Passamos a sair da água um pouco antes do anoitecer. Tirávamos o calção e o batíamos contra a parede onde estava a turbina, para sair o máximo possível de água. Assim dava tempo do calção secar até chegarmos em casa. Mas como nada é perfeito, a parte do elástico ficava molhada. Algumas vezes a mãe ou o pai percebia que o elástico estava molhado. Daí o chinelo comia solto nas nádegas e nas pernas. Era o costume da época!

Por falar em surra, quando penso nas que levei, constato que não ficou qualquer trauma ou problema psicológico. Lembro que apanhei muito, mas não lembro da dor em si das varadas ou chineladas. Não tenho qualquer revolta por causa das muitíssimas sovas que levei. E quando lembro, a minha reação é dar risada e dizer: “Eu merecia”. A mãe só dava tapas. Só acertava o primeiro, porque quando ia dar o segundo, já tínhamos fugido. E ela ficava dizendo: “Venha aqui que eu quero te bater”. Como éramos desobedientes e não queríamos apanhar, corríamos para longe. Ao voltarmos, a raiva da mãe já tinha passado. Por isso não batia mais.

Com o pai não adiantava correr, porque ele nos pegava quando voltávamos. As lapadas dele eram pesadas e prolongadas. Tinha um pé de marmelo no quintal e era dali que ele pegava a vara. Como aquela vara demorava para quebrar, se é que quebrava! Ele utilizava também seu chinelo de couro. Colocava a nossa cabeça entre suas pernas, ficávamos, consequentemente, curvados com o traseiro pra cima e pronto pra receber as chineladas. Como era doído!!! Muitíssimas vezes também usava a cinta. As pernas dançavam e saltavam querendo inutilmente escapar das cintadas.

O nosso castigo mais temido não era a surra, mas sim uma xícara de azeite de oliva, que o pai nos obrigava a tomar. Era da marca Gallo ou Carbonell. Como era ruim!!!! Eu preferia tomar cinco tundas do que uma xícara daquela coisa que custava a descer pela garganta e com seu gosto ficando por muito tempo na boca. Não virou trauma, mas sim um certo bloqueio psicológico, tanto é que até hoje me repugna e evito usá-lo na salada.

Mesmo com as surras e castigos, não desistíamos de ir ao rio tomar banho. O meu grande problema foi aprender a nadar. Não tive a mesma sorte das crianças Munduruku, que são levadas desde o dia do nascimento para serem banhadas no rio. Tive que aprender como os outros meninos aprendiam. O “pulo do gato”, o modo infalível para aprender a nadar era engolir um peixinho vivo. Sim, isso mesmo: engolir um lambarizinho vivo! A crença era de que ele iria nadar dentro do estômago e assim ensinava a criança a nadar. E por incrível que possa parecer, a artimanha funcionava muito bem. No meu tempo todos os meninos aprenderam a nadar engolindo pelo menos um peixinho vivo. Essa “técnica” funcionava como alavanca para fazer com que a criança perdesse o medo, que é o principal entrave para alguém aprender a nadar.

Eu custei a perder o medo. Por isso tive que engolir vários guarus. Um dia consegui pegar um lambari maiorzinho. O bichinho desceu fazendo cócegas na garganta. Me senti forte e sem medo. Entrei em águas mais profundas e comecei a nadar como um “cachorrinho”. Batendo as mãos e pés consegui chegar ao outro lado do rio. Que alegria e que sabor de vitória! Só quem passou por uma experiência semelhante entenderá essa sensação de superação.

Para nós era normal "matar aula" para ir tomar banho no rio. Se o pai ficasse sabendo, a coça era dupla: uma por matar aula e outra por ir ao rio, mas moleque não tem jeito! Sempre havia pessoas linguarudas para contar: “Vi teu filho tomando banho no rio durante o período das aulas”. É, em cidade pequena o controle social é grande!

Diz-se que a primeira pesca nunca se esquece, principalmente se consegue pegar seu primeiro peixe. Recordo perfeitamente a minha primeira vez: peguei dois peixes! Foi um atrás do outro. Meu irmão mais velho ia pescar e me levou junto. Eu devia ter uns 6 anos. Lembro-me que foi depois da Copa do Mundo de 1958. Está na minha memória o local onde chegamos: era para cima da indústria de bebidas do Hilário Zilio e havia árvores, portanto, não ficávamos expostos ao sol. Meu irmão se instalou no melhor poço e não me deixou pescar ali, visto que o poço era pequeno. O jeito foi arrumar um local para mim. Subi uns 15 a 20 metros e pressenti que ali era um bom local. O meu faro de pescador não falhou: foi jogar a minhoca na água e já fisguei um dourado cachorro. Como gritei e pulei de alegria! Foi maravilhoso demais pegar aquele primeiro peixe! Joguei o anzol de novo e peguei o segundo. Eu nem acreditava! A sensação era de que estava vivendo momentos de pura magia! 

Meu irmão veio e tomou o meu poço, dizendo: “Você não sabe pescar! Eu vou pescar aí!” Ele era bem maior que eu e se eu engrossasse, além de levar alguns safanões, não seria chamado outras vezes. Claro que eu “afinei”, obedeci e deixei o poço para ele. Fui ao local onde ele estava. Não peguei mais nada, mas a vitória já era minha! Cheguei em casa radiante, com o troféu na mão, podendo mostrar os dois peixes e contar a história para o pai. Ele profetizou: “Você será um grande pescador!” Acho que ele acertou! Oh felicidade!

Muitas vezes íamos pescar lambari. O material de pesca era comprado na Casa Japonesa, próxima ao rio. Só tínhamos um único anzol, ou seja, o da vara. Não havia um de reserva! Se enroscasse, pulávamos na água para desenroscar. Normalmente pescávamos do lado de baixo da represa. Havia um “ladrão” antes da turbina por onde a água excedente passava formando uma pequena cachoeira. Ali dava muito lambari. Quando chovia, a água ficava barrenta e então só dava bagre e mandi. A isca, para qualquer peixe, era sempre minhoca. 

Na represa, formada para abastecer a turbina geradora de luz para a cidade, havia muito aguapé e daí pescávamos de peneira. Normalmente pegávamos o peixe espada, também conhecido como morenita ou tuvira. Em dois enfiávamos a peneira debaixo do aguapé e a erguíamos; um terceiro tirava o aguapé e os peixes ficavam na peneira. De vez em quando aparecia um bagre ou mandi. Lambari era muito difícil de pegar na peneira. Eles fugiam quando nos aproximávamos. 

Festa mesmo, era quando, na peneira, havia uma piramboia (muçum, enguia, também chamada de peixe cobra, por parecer com uma). É lisa e difícil de ser contida nas mãos, por isso corríamos para onde havia areia fora da represa. Com areia nas mãos era fácil de pegá-la. De cor preta, ficava branquinha depois que tirávamos as tripas e jogávamos água quente em cima, raspando com uma faca. Era muito saborosa. Recentemente descobri que é uma excelente isca para pegar pintado.

Em torno de um quilômetro para baixo da turbina havia um ótimo lugar para tomar banho. O local era conhecido como “pinguela”, devido a uma árvore caída e atravessada no rio, que possibilitava o trânsito a pé de uma margem para a outra. Quando íamos tomar banho ali, sempre víamos um cardume de curimbas. Este tipo de peixe é muito difícil de pegar com anzol, porque ele chupa a isca sem morder.

Para ir até a pinguela descíamos a avenida até a última rua antes do rio. Na esquina, do lado direito, estava a Casa Japonesa; dobrávamos à esquerda e íamos até o fim, onde na esquina do lado esquerdo residia a família Gehring. Era uma casa grande de madeira com várias janelas e de cor verde. Continuávamos pelo lado da serraria do Sr. Carlos Antonio Gehring, seguindo transversalmente em direção ao rio.

Do outro lado do rio, margem direita, estava a propriedade do Sr. José Raimundo. Ali trabalhava a família de Pedro Agostinho Arraes e Maria Vitória do Nascimento. O filho Agostinho Pedro Arraes, que mais tarde se tornou um famoso judoca e professor de judô, passava pela pinguela todo dia para ir à escola. Segundo o Agostinho, não se tem notícia de que alguém tenha caído no rio ao passar pela pinguela, com o detalhe de que não havia um corrimão.

Recordo que um pouco para cima, do outro lado do rio, havia uma família oriunda da Checoslováquia. Meu pai tinha uma grande amizade com o chefe daquela família. Guardo na memória uma conversa do meu pai com o velho tcheco sobre a final da copa do mundo de 1962, quando o Brasil se sagrou bicampeão ao vencer a final justamente contra a Tchecoslováquia. Masopust havia feito 1 a 0 para os tchecos, mas Amarildo, Zito e Vavá viraram o jogo para 3 a 1 a favor da seleção canarinha e o Brasil se tornou bicampeão mundial.

Em relação ao clã tcheco, recordo também do Bodalírio Constantini, que era casado com uma das filhas do casal tchecoslovaco e era poceiro, ou seja, furava poços e fossas. Um dia teve a infelicidade de morrer soterrado devido a um desbarrancamento no poço que estava cavando. Por ser uma pessoa muito querida, causou grande comoção na pequena cidade.

Um dado interessante é que - segundo a minha memória - durante o período da nossa infância não morreu afogada uma criança sequer, na represa e no rio Tigre. Por que será? Certamente o anjo da guarda nos protegeu muito bem! Em casa, a nossa mãe, além do “Santo Anjo”, nos ensinou a rezar uma oração bem curtinha: “Meu anjinho, meu amiguinho, me leve sempre pelo bom caminho”. 

Se recordo as travessuras e loucuras que fazíamos no rio, percebo que, sem dúvida alguma, os anjos da guarda nos protegeram. É só pensar no atrevimento e irresponsabilidade da “molecada” ao pular naquelas águas, de cima do monte de pó de serra, para se ter certeza. No fundo do rio havia paus que foram jogados junto com a serragem vinda da serraria. Era um perigo medonho, mas nunca aconteceu nada. Por que será? Sorte ou proteção divina?

Era encantador ficar observando as jaçanãs, que chamávamos de marrequinhas, andando sobre os aguapés. Essa linda ave de bico amarelo, peito preto, costa marrom e asas, quando abertas, de cor amarela clara - quase branca, me fascinava. Minha vontade era armar uma arapuca para pegá-las e poder levá-las para casa. Infelizmente de vez em quando aparecia um caçador e as matava. Com isso a natureza perdia um pouco do seu encanto, da sua beleza, alegria e esplendor.

Mas as minhas idas ao rio não foram só alegrias, também aconteceram alguns acidentes. Vou contar apenas um, sucedido em janeiro de 1965. Estávamos voltando do banho e passando por uma erosão feita pelas enxurradas que desciam pelas ruas da cidade. Era uma valeta enorme tanto de largura como de profundidade. Não me lembro quem estava caçando, mas o tal sujeito deu um tiro numa cachopa de abelhas. Todos corremos. Eu comecei a correr olhando para trás, quando me virei, bati com a testa na quina de uma grande vigota que estava atravessada na valeta. Fez um talho na testa e não parava de sair sangue. Precisava dar pontos, mas meu medo de injeção era e é maior que o estrago provocado por aquela grande valeta. Tenho verdadeiro pavor de levar uma espetada de agulha. Não importa o tamanho da agulha, nem se é anestesia, vacina ... eu evito o máximo que posso. Para obturar um dente sempre digo que é para fazer sem anestesia. 

Naquela ocasião, meus pais, irmãos e mais alguns conhecidos tiveram um trabalhão para me levar até o hospital. O experiente médico da cidade, Dr. Olivier Grandene, meu padrinho de crisma, estava de férias. No hospital, os dois estudantes de medicina, que estavam estagiando, ficaram apavorados! Ninguém conseguia me segurar. Recordo que na sala estavam meu pai, minha mãe, meus dois irmãos mais velhos, Valdir e Valdomiro. Também o meu tio, Narciso Santin, os dois estagiários e mais algumas pessoas que foram chegando. Tinha apenas 12 anos, mas eu parecia o Sansão; minha força e resistência era tamanha, que eles não conseguiam me imobilizar. Por fim chegou o Sr. Leitner, que era gordo e bem barrigudo. Ele deitou em cima dos meus joelhos e me imobilizou. Daí o estagiário, que usava um bigodinho, conseguiu anestesiar. Levei seis pontos!

Teria ainda muitas histórias e peripécias para contar, creio que estas, por hoje, são suficientes para ajudar o leitor a recordar sua própria infância. Termino com uma poesia que contém muitas coisas com as quais me identifico. Não é do Patativa do Assaré, mas muito semelhante à dele.


Menino de rua 

 

Menino de rua 

Que pinta, que esbanja, que rouba laranja no meu quintal 

Que atiça o cachorro, que joga bolinha 

Que engraxa sapato, que xinga a vizinha 

Que vende jornal 

Menino de rua 

Moleque vadio que fuma 

Que nada no rio em dia de sol 

Que grita, que briga 

Que faz arruaças, que estraga telhado 

Que quebra vidraças com seu futebol 

Menino de rua 

Que foge da escola 

Que forma seu bando de gente gabola no becos sem luz 

Que diz nome feio, que gospe e conjus 

Que segue o palhaço 

Que mente, que jura com dedos em cruz 

Menino de rua 

Que pisa na lama, que senta no chão, que suja as calças 

Que põe apelidos 

Que busca recados, que leva bilhetes por vinte centavos 

Menino de rua 

Magrinho e briguento que quase não come 

Que dorme ao relento sem nada queixar 

Que vai ao cinema, que banca o mocinho 

Que canta e assobia, que sofre sozinho, que vive sem lar 

Menino de rua 

De brecha na testa, de calça rasgada 

Que em dia de festa a gente não vê 

Que joga baralho, que pula, que salta 

Que brinca de pique 

Menino Peralta 

Invejo você! 

Lucia Javorski Bara[ [1] ]

 

Itaituba, 22 de fevereiro de 2023.

 


 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

“De Nazaré pode sair algo de bom?” - 1




“De Nazaré pode sair algo de bom?” - 1

UMA EXPERIÊNCIA NO PRESÍDIO DE ITAITUBA


Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

 

Certo dia recebi um convite para representar a parte católica numa celebração ecumênica no presídio da cidade de Itaituba. Não fui informado sobre quantas e quais outras igrejas tinham sido convidadas. Sempre que posso, aceito com muita alegria convites para participar de celebrações ecumênicas. Rezar juntos é maravilhoso e sempre faz bem! Jesus nos dá o fundamento: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Nessas celebrações sempre estamos reunidos em nome de Jesus.

O presídio, cujo nome oficial é Centro de Recuperação de Itaituba, foi construído há mais de 25 anos com o objetivo de abrigar 190 detentos. Porém, segundo notícias veiculadas na imprensa local, normalmente está lotado e algumas vezes com mais de 400 reclusos. A superlotação provém do fato de que a casa prisional recebe presos dos municípios de Aveiro, Itaituba, Jacareacanga, Novo Progresso, Rurópolis e Trairão.

Todo ano a imagem de Sant’Ana é levada ao presídio antes dos festejos da padroeira. Por isso, estive nesse lugar algumas vezes acompanhando a imagem. Normalmente passamos pelos corredores e entramos nas celas. Porém, uma vez isto não nos foi possível entrar nas celas e nem sequer passar pelos corredores devido ao alto risco de uma rebelião. Fomos levados para a parte de cima das celas e de lá podíamos ver os presos e eles também conseguiam nos ver. Fomos cantando, rezando e mostrando a imagem. Os presos nos olhavam um pouco assustados sem entender o que estava acontecendo. Ao verem a imagem, alguns faziam o sinal da cruz e outros demonstravam uma cara de poucos amigos. 

Há uma ala feminina, mas sempre com poucas detentas. Numa das vezes, uma presa se ajoelhou, rezou, pediu uma bênção implorando para que eu rezasse por ela. No dia da festa de Sant’Ana, dia 26 de julho, ela participou da procissão e conversou comigo dizendo que tinha recebido um indulto e que iria recomeçar a vida. Seis anos depois ela me encontrou na rua e me perguntou se eu a reconhecia. Tive que responder que não. Ela me disse: “Sou aquela presa que o senhor rezou por ela. Me regenerei e constituí uma nova família. Estou muito feliz!” Naquele momento senti uma grande alegria e elevei a Deus uma oração de agradecimento. O Papa Francisco tem razão ao afirmar: “Antes de tudo lembremo-nos de que a conversão é uma graça, portanto, deve ser pedida a Deus com força”. O Sucessor de Pedro também explica que a conversão “Na Bíblia, significa primeiro mudar a direção e a orientação; e depois também mudar a maneira de pensar. Na vida moral e espiritual, converter meios de passar do mal ao bem, do pecado ao amor de Deus”. Aprofunda afirmando que a conversão “envolve a dor pelos pecados cometidos, o desejo de se livrar deles, o propósito de excluí-los da própria vida para sempre. Para excluir o pecado, é preciso também rejeitar tudo o que está ligado a ele: a mentalidade mundana, a superestimação do conforto, do prazer, do bem-estar, das riquezas. O Pontífice conclui: "Nós nos convertemos verdadeiramente na medida em que nos abrimos à beleza, à bondade, à ternura de Deus. Então deixamos o que é falso e efêmero, para o que é verdadeiro, belo e dura para sempre" (Angelus – 06 de dezembro de 2022).

Desta vez quando cheguei em frente ao presídio, havia ali na rua um grupo de evangélicos. Fui conversar com eles e me apresentei. Disseram-me que eram da Congregação Cristã no Brasil. Um deles me pareceu ser do sul do país, por isso perguntei de onde ele era. 

- “Do Paraná!”, respondeu-me. 

- “De que cidade?” 

- “De Maristela!”

- “Maristela, distrito de Alto Paraná?” 

- “Sim”.

Espontaneamente brinquei: - “Mas de Maristela pode sair coisa que presta?” 

Ele não gostou, me olhou com um olhar ameaçador, fechou a cara e não respondeu, dando as costas pra mim. Tentei amenizar dando uma risadinha e dizendo: - “Só sai coisa boa de Alto Paraná ou Paranavaí!” Não teve jeito: continuou com a cara amarrada. Não me preocupei, porque sabia que tudo se resolveria na celebração.

Entramos, conversamos com os dirigentes e funcionários do presídio que foram muito amáveis e manifestaram alegria pela nossa presença. Ofereceram-nos um café com lanche.

A celebração foi realizada no pátio externo ao ar livre. O motivo era a formatura de um grupo de detentos que tinham feito um curso de reciclagem de plásticos. Estavam presentes também o juiz e o promotor. Fui o primeiro a ter a palavra. Usei como texto bíblico  a narrativa do encontro de Jesus com Natanael (Jo 1,29-51). Ao comentá-lo, fiz uma atualização do versículo 46, ou seja, a pergunta de Natanael a Filipe: “De Nazaré pode sair algo de bom?”, interrogando sobretudo os presos mas também as pessoas ali presentes: “Porventura, pode sair algo de bom deste presídio?” Foi um silêncio total! Passei o olhar sobre todos os detentos e concluí com voz potente e segura: “Claro que pode! Vocês em breve vão sair daqui e vão recomeçar a vida. Por isso fizeram este curso de reciclagem. Só depende de cada um de vocês iniciar uma nova fase na vida para não ter que voltar para cá”. Continuei estimulando-os a aproveitarem a liberdade, ao saírem da prisão, para começarem uma vida nova. Citei como exemplo aquela presa que me pediu a bênção, que se regenerou e estava muito feliz. Recordei o que em geral a população pensa em relação aos presos. Repeti a frase de Natanael que duvidava que de Nazaré pudesse sair algo de bom. Acentuei: “De Nazaré saiu Jesus, o nosso Salvador!” Em seguida me dirigi ao homem de Maristela: “Pois é, lá fora eu brinquei com nosso irmão lá do Paraná perguntando se podia sair coisa que presta de Maristela. Quero lhe dizer que eu tinha em mente este versículo do evangelho. Eu não queria desprezar Maristela, o simpático e progressista distrito de Alto Paraná.” O homem, que estava ainda com a cara amarrada, abriu um lindo sorriso. Viramos amigos! Temos nos encontrado várias vezes. Sempre conversamos e comentamos sobre nossas idas ao Paraná. Eu gosto de me encontrar com ele e sinto que ele gosta de se encontrar comigo.

Aí está uma prova de que quando rezamos juntos, nasce amizade, alegria e o mais bonito: passamos a nos tratar como verdadeiros irmãos!

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

02 de fevereiro de 2023.

Festa da Apresentação do Senhor

 

 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Quando um doce de abóbora é especial

 

Quando um doce de abóbora é especial

 

 

 


A vida é um livro que deve ser foleado página a página, sem que se consulte o índice” (Coelho Neto).


Uma das coisas mais encantadoras e prazerosas da vida é recordar as belas e edificantes experiências. Particularmente, me é apaixonante recordar os tempos de criança. Se olho para minha infância, vejo que fui muito feliz, apesar de todas as dificuldades que vida nos impôs.

Tive a graça de nascer numa família numerosa. Sim, considero este fato um privilégio e uma verdadeira graça de Deus. Éramos 9 filhos = 5 x 4 para os homens. Por uma fatalidade, o mais velho morreu num acidente automobilístico aos 28 anos. Portanto, há mais de 45 anos somos em 8, ou seja, 4 homens e 4 mulheres. 

Meu pai era marceneiro e carpinteiro. Órfão de mãe com um ano de idade e de pai aos 9 anos. Foi criado por uma virtuosa e santa madrasta. Desde pequeno teve que trabalhar. Foi um pai muito rígido com os filhos e amabilíssimo com os netos. Gostava muito de futebol e era palmeirense, portanto não negava sua origem italiana. Cresci indo com ele assistir jogos do Nova Londrina Esporte Clube. Ele por décadas fez parte da diretoria do time. Como católico praticante, exigia que os filhos participassem da missa dominicalmente. Por mais de 30 anos foi ministro extraordinário da Eucaristia. Despediu-se serenamente deste mundo aos 85 anos.

A minha mãe é uma guerreira, dotada de uma força e disposição incríveis. Além de se dedicar aos 9 filhos, encontrava tempo para costurar para fora e fazer permanente nos cabelos das mulheres para ajudar nas despesas da casa. Também foi empreendedora: teve bazar, mercearia e funerária. Era incansável em fazer, duas ou três vezes por semana, o pão caseiro mais gostoso da cidade pra alimentar a “renca” de filhos. Não nos deixava comer pão quente. Dizia que dava dor de barriga. Uma vez eu lhe disse que isso não era verdade, porque a gente comia arroz e feijão quentes e não dava dor de barriga. Ela ponderou que pão era massa. Na “tampa” retruquei: “Mãe, a gente come macarrão quente, que é massa, e não dá dor de barriga!” Ela me disse: “Ah, não sei! Você está perguntando demais, mas que comer pão quente dá dor de barriga, dá!”

Por muito tempo fiquei matutando esta convicção da minha mãe sobre o pão quente. Fiquei observando e pensando. Por fim cheguei à conclusão de que realmente comer pão quente dá dor de barriga, mas não porque o pão está quente e sim porque é muito gostoso, por isso a pessoa come muito além do normal, se empanturra e como consequência passa mal. Eu com 10 anos, se a mãe deixasse, eu comeria pelo menos dois pães inteiros, ou seja,  a quantidade de pão destinada para a família toda no café da manhã.

Nunca passamos fome, mas o dinheiro era escasso. Tempos de crise braba! A vontade de ir ao cinema para assistir aos famosos bangue-bangues do Velho Oeste era enorme. Como não recordar os filmes: “O dólar furado” com Giugliano Gemma? ou “Os três homens em conflito - O Bom, o Mau e o Feio” com Clint Eastwood, Lee van Cleef e Eli Wallach? Como esquecer os filmes do Zorro com o índio Tonto? e do Tarzan? do Gordo e Magro ou Mazzaropi? Os nossos heróis cinematográficos eram: Roy Rogers, Henry Fonda, John Wayne, Burt Lancaster, Kirk Douglas, ... Entretanto, o melhor de tudo era depois ir brincar de “mocinho”. Como éramos felizes com tão pouco!!!! Um cabo de vassoura colocado entre as pernas “virava” um cavalo, qualquer pequeno pedaço de pau podia virar um revólver! Todo mundo dava tiro à vontade, as balas nunca acabavam e ninguém morria: só matava! O grande escritor e orador Cícero diria: “O tempora! O mores” (Ó tempos! Ó costumes!) Eu, porém, digo “Ó tempos encantadores e experiências inesquecíveis!!!”

Ao repassar na memória aqueles tempos magníficos, os meus lábios começam a recitar espontaneamente o início da poesia “Meus oito anos”: 

Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!

Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!

Os poetas românticos, como Casemiro de Abreu nesta poesia, foram geniais e se eternizaram. Basta mencionar Gonçalves Dias, Castro Alves, Álvares de Azevedo... para ter a confirmação da genialidade dos românticos. Por falar em poetas românticos, recordo que o Romantismo foi introduzido no Brasil por Gonçalves Magalhães, em 1836, com o livro "Suspiros poéticos e saudades".

É certo que o Romantismo brasileiro foi marcado por um certo exagero sentimental. Os românticos souberam despertar a emoção e a ação do leitor e da leitora ao idealizarem o amor e o saudosismo, ao valorizarem o nacionalismo e colocando em destaque a figura do índio como herói, quesito este em que o grande José de Alencar se sobressaiu com as obras: “O Guarani”, “Iracema” e “Ubirajara”. Até hoje o romantismo está presente com maior ou menor intensidade na cultura e mentalidade dos brasileiros.

Mas a realidade da infância não foi só de sonhos e alegrias: foi dura e às vezes também cruel! Que sentimento de frustração era o de ter vontade imensa de ir a cinema e não ter o dinheiro para a entrada. Que sensação horrível era “sentir as lombrigas assanhadas” ao ver doces e sorvetes, mas não poder comprá-los por falta do “baioque”, como dizia a mãe ao nos contar como o nono Foletto chamava a grana. A mãe nos colocou em sintonia com a tradição familiar contando as histórias de sua infância e das peripécias de seu pai e irmãos. Repetiu muitas vezes o que o nono dizia, em dialeto vêneto, quando os comerciantes queriam comprar fiado a sua produção de banha: “Vien il baioque e via la banha!" ou "Senza baioque prima, la banha non va!” (“Venha o dinheiro e vai a banha!" ou "Sem dinheiro primeiro, a banha não vai”). Só entregava a banha quando o dinheiro estava na sua mão. Certamente ele tinha sido enganado algumas vezes pra não confiar nos compradores. A vida é mestra e nos ensina!

Nós nos virávamos como podíamos pra arrumar alguns trocados. Íamos derriçar e colher café, à “panha” de algodão, carpir, escolher e separar grãos de café na cooperativa, engraxar sapatos, ... Nós catávamos mamona, deixávamos secar no pátio e depois recolhíamos grão por grão manualmente colocando-os numa lata de um litro. Quando a lata estava cheia, íamos vender no seu Severino Troian por um cruzeiro. Dava pra comprar um picolé. Ah! como eram deliciosos aqueles picolés! Quando a colheita era maior, dava pra comprar um ingresso para o cinema. Que felicidade!

Quantas vezes fiquei desejando comer os doces que eram vendidos no bar São João do Seu Vitório Zoletti, em frente de casa e não tinha nem um cruzeiro. Havia um doce de abóbora em forma de coração. Como era saboroso!

Lembro que eu sabia todas as orações rezadas por um católico, menos a Ave Maria. Rezávamos um terço do rosário todas as noites em família. Portanto, eu repetia 50 vezes esta oração diariamente e nada de decorar. Sabia rezar junto com os pais e irmãos, mas não conseguia rezar sozinho. Até hoje não sei qual era o porquê do bloqueio, mas não tinha jeito de aprender a principal oração dedicada à Mãe de Deus. Um dia meu pai me prometeu dar um cruzeiro se aprendesse de cor a principal oração dedicada à Virgem Maria. Ah! num instantinho aprendi. Cheguei e disse: 

- “Pai, o senhor me prometeu dar um cruzeiro se eu aprendesse de cor a Ave Maria e agora eu sei.” 

- “Eu prometi e eu cumpro o que prometo. Porém, reze primeiro pra eu ter a certeza de que você sabe tudo direitinho sem pular nada ou embaralhar”, contestou. 

Rezei sem me atrapalhar, ele me deu a nota de um cruzeiro, que tinha a imagem do Almirante Tamandaré, e eu todo feliz corri até o Bar São João comprar o saboroso doce de abóbora em forma de coração. Deu pra comprar dois! Que alegria! Que felicidade! É só eu recordar aquele momento tão especial, e logo me dá água na boca!

O tempo passou, crescemos e a vida se transformou. Os gostos mudaram, muitas coisas que “adorávamos” foram pouco a pouco ficando para trás. Passaram-se os anos e as novas atividades foram nos engolindo. É raro nos lembrarmos dos picolés, dos doces, dos mocinhos, dos filmes... Tudo isso deixou de ser uma necessidade para nós!

Quando voltei a morar em Paranavaí, já com mais de 32 anos, constantemente eu ia para Graciosa visitar os confrades do seminário. Nestas idas, algumas vezes visitava o Seu Manoel Jó. Ele era um nordestino do sertãozão da Paraíba com uma incrível sabedoria popular, adquirida no dia-a-dia com as experiências e dificuldades da vida. Conversar com o seu Manoel era para mim ocasião de prazer e de enriquecimento pessoal ouvindo as experiências e conhecimentos daquele sertanejo paraibano. Quase a vida toda ele trabalhou na roça, mas, quando as forças já não eram as mesmas, e a idade começava a pesar, ele comprou um bar para continuar ganhando o pão de cada dia.

Certa vez fui encontrá-lo no seu bar. Ficamos conversamos, dando risadas com seus causos e experiências. De repente olho para as prateleiras. Vejo potes transparentes de vidros cheios de doces. Fui vendo os potes com pirulitos, com balas de diversos tipos, com paçoquinhas, pés de moleque, ... e de repente meus olhos se fixaram extasiados no pote que continha os inigualáveis doces de abóbora formato de coração. Aflorou-me na memória os tempos de criança, fiquei com uma vontade imensa de comer aquela delícia feita de abóbora. Comentei que fazia uns 20 ou mais anos que não via o meu doce preferido em forma de coração. Claro que pedi um. Seu Manoel se levantou e foi buscar a “divina” iguaria. Não o comi: devorei-o! Foi tamanha a minha voracidade que o Seu Manoel pegou mais um e me deu. Num instantinho também desapareceu na minha boca.

Quando fui pagar os doces. Seu Manoel me disse:

- “Não vou cobrar não. Nunca vi alguém comer um doce de abóbora com tanto gosto como desta vez. Fiquei tão feliz que nem tenho coragem de cobrar”.

Ao repassar esses fatos da minha infância apareceu na minha memória o texto do Apóstolo Paulo: “11Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança. 12Agora nós vemos em espelho e de maneira confusa; mas, depois, veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido” (1Cor 13,11-12).

Não sou mais criança, mas tenho que reconhecer que, com meus 70 anos, aquelas experiências dos tempos de infância foram importantes para me ajudar a ser aquilo que sou hoje. Sou grato a Deus por ter me proporcionado uma infância tão feliz! Só recordo as coisas boas e edificantes, as ruins ou foram incorporadas na minha experiência me fortalecendo ou já as esqueci.

Concluo com as primeiras duas estrofes e a conclusão de uma das poesias publicadas por Gonçalves de Magalhães em Suspiros poéticos e saudades ao introduzir o movimento artístico cultural denominado Romantismo no Brasil em 1836.

A INFÂNCIA

Oh minha infância! Oh estação de flores!

De inocente ilusão alva saudosa!

Inda hoje te apresentas

Ante mim, como a imagem deleitosa

De um sonho que encantou-me a fantasia,

Ou como a aurora de um formoso dia.

Oh da infância atrativos lisonjeiros!

Mentirosos afetos!

Com que prazer amigos passageiros,

Inúmeros, na infância contraímos!

E quão fáceis após os repelimos,

De ligeiras palavras agastados.

...........

Oh quão perto a velhice está da infância!

E quão perto da infância a morte adeja!

 

Wilmar Santin

Itaituba, 15 de novembro de 2022.



ADENDO

 

De 2 a 10 de janeiro de 2023 fiz, no Mosteiro de Itaici (Indaiatuba, SP), o retiro anual para bispos. Um dos métodos para oração é ler um texto bíblico, depois imaginar a cena e se colocar dentro como participante. Eu normalmente não consigo entrar na cena, fico de fora assistindo como se fosse um filme. Partilhei com o orientador essa minha dificuldade. No meio da conversa contei a dificuldade que tive para aprender a Ave Maria e como foi removido este bloqueio. Ele me orientou para incluir na cena o menino feliz que gosta de doce de abóbora e que está dentro de mim. Foi tiro e queda: deu certo, consegui participar e não só assistir.

 

A primeira cena em que o doce de abóbora apareceu foi no episódio em que Jesus voltou para Nazaré e seu retorno a Cafarnaum (Lc 4,16-37). Consegui acompanhar Jesus e participar. Fui com ele visitar Nossa Senhora em Nazaré. Vi na cena ela dizendo pra Jesus: “Como eu sabia que você viria, preparei doce de abóbora que você tanto gosta”. Ali, junto com Jesus, saboreei o doce de abóbora feito pela própria mãe de Jesus.

Depois dos acontecimentos na sinagoga de Nazaré em que Jesus lê o texto de Isaías a respeito do Messias e diz: “Hoje se cumpre esta passagem da Escritura que acabais de ouvir” (v. 22). Seus amigos de infância e conhecidos se revoltaram e quiseram matar Jesus. “Mas Jesus passou no meio deles e seguiu seu caminho” (v. 30).

Jesus foi para Cafarnaum. Acompanhei Jesus nesta viagem. Mais ou menos na metade do caminho, paramos para um descanso. Ofereci para Jesus água e doce de abóbora, que sua mãe tinha me dado.

Senti que o menino tinha saído de mim e estava acompanhando Jesus. Nem é preciso dizer da minha alegria e felicidade por a oração ter fluído tão bem.

 

Outro texto rezado e meditado foi Lc 7,36-30 = Jesus perdoa a pecadora na casa do fariseu.

Jesus foi convidado para jantar na casa do fariseu Simão. Uma pecadora vai lá, chora aos pés de Jesus, enxuga com seus cabelos e passa perfume. Em seus pensamentos, o fariseu julga Jesus: “Se esse homem fosse um profeta, saberia quem é a mulher que está tocando nele: é uma pecadora” (v. 39). Jesus dá uma lição no fariseu e perdoa os pecados da mulher de maneira bem direta: “Teus pecados estão perdoados” (v. 48).

Consegui participar e não só assistir. O fariseu, quando viu que eu estava com Jesus, me convidou diretamente: “Wilmar, você também está convidado para o jantar. A sobremesa será doce de abóbora!” Pensei: se tem doce de abóbora eu tenho que ir de qualquer jeito. Fui e na hora da sobremesa, claro que o primeiro a ser servido seria Jesus, afinal ele era o convidado especial, mas, quando estavam trazendo a sobremesa, Jesus disse: “Primeiro deem para o Wilmar porque ele gosta demais de doce de abóbora”! Foi muito privilégio comer doce de abóbora antes de Jesus!!!!!!!!!


Mosteiro de Itaici (Indaiatuba, SP), 10 de janeiro de 2023.

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Colete salva-vidas embaixo do seu assento

 

Avião ATR turbo-hélice


Colete salva-vidas embaixo do seu assento

 

 

Saí de Itaituba rumo a Manaus num avião turboélice ATR 42 da Passaredo, popularmente conhecida em alguns ambientes como “Passa-Medo”. O voo era para ter saído às 10h25, atrasou e saiu às 13h45. Atrasos ou cancelamentos de voo são marca registrada desta companhia aérea - pelo menos na Amazônia. As reclamações são constantes não só por atrasos como também por problemas nos aviões. Os cancelamentos de voos fazem parte da rotina, tanto é que desta vez foram cancelados 3 voos seguidos e o quarto estava atrasado. Por isso o povo tem medo de atraso, medo de cancelamento do voo e até mesmo medo de defeito no avião. Já aconteceu do avião ter que parar em Parintins para reparos.

Ao decolar comecei a repassar na memória os transtornos da manhã por causa do dito atraso. Não é que eu estava furioso ou com raiva, mas internamente estava lamentando o descaso da empresa para com os passageiros. Até parece que seus diretores e executivos não sabem que é o cliente o principal patrimônio de qualquer empresa e que se esta os perder, vai à falência. A “Passa-Medo” não receia perder seus clientes porque não há concorrência na linha - por enquanto, por isso negligencia os passageiros causando-lhes tantos danos. Infelizmente as autoridades não têm tomado as devidas providências e assim, o povo sempre é prejudicado! Mas há um sinal de esperança: a Azul deverá ter uma linha Itaituba-Manaus a partir de dezembro deste ano.

Ao chegar ao aeroporto vi uma enorme fila para o check-in. Logo escutei que o voo estava atrasado, ou pior, que o avião ainda nem tinha saído de Manaus, - o que era indicativo de um grande atraso ou que talvez fosse cancelado, como no dia anterior. Após fazer o check-in e por ter recebido a informação de que o voo seguramente seria só após o meio-dia, retornei para casa. Não iria ficar em torno de 3 horas no pequeno aeroporto em pé – os bancos disponíveis estavam todos ocupados - esperando a hora chegar, coçando o umbigo ou procurando buracos no ar.

Quando voltei ao aeroporto, recebi a informação de que havia atraso no atraso. Os funcionários diziam que o avião chegaria às 12h30. Depois era para chegar às 12h50. Dava dó de ver a cara dos funcionários, que são meus conhecidos e são gente boa. Eles não podiam fazer nada, a não ser tentar apaziguar alguns exaltados e dar esperança de que o avião iria chegar e que todos viajariam. 

Resolvi utilizar o aplicativo “Flightradar24”, que mostra voos com o horário da chegada, para ver se o avião já estava vindo na direção de Itaituba. Vi que de Manaus para Itaituba não havia qualquer sinal de que um avião estivesse voando neste trecho. Comecei a ficar um pouco apreensivo. Um funcionário me tranquilizou dizendo que era oficial: o avião pousaria às 13:06. Logo em seguida avisaram que a empresa iria fornecer almoço para os passageiros que aguardavam o voo. Era só ir ao bar-restaurante e solicitar. Eu fui e escolhi uma bisteca de porco.

Antes da bisteca chegar, começou o movimento de entrada para a sala de embarque. Fiquei na dúvida se iria embarcar com fome ou se iria saborear a bisteca suína. Havia passageiros que ainda estavam comendo ou esperando a comida ser servida.

Finalmente chegou a bisteca com macarrão-espaguete, arroz, purê de batata, uma saladinha e farinha de mandioca. A comida estava uma delícia, contudo, antes mesmo de terminar meu almoço, chegou o aviso para nos apressarmos, porque o embarque começaria em breve.

Para a alegria geral de todos, pouco antes da 13h30 teve início a entrada a bordo do avião. Como sou prioritário por lei, afinal já estou dentro dos 70, fui na primeira leva. A maioria deste grupo era de mulheres com crianças.

Um menino de uns 10 anos estava muito feliz, porque seria a primeira vez que iria viajar de avião. A mãe dele, uma simpática e sorridente venezuelana, estava com uma criança de colo. Ela fala muito bem o português, mas seu sotaque demonstra que sua língua materna é o espanhol. Estava com ela também uma senhora que parecia ser sua mãe ou sogra. Não escutei a mulher dizer uma palavra sequer. Por isso, como não perguntei, não pude saber se ela também é ou não venezuelana.

O embarque foi tranquilo. Sentei-me no assento 12A, ou seja, junto à janela. De repente bati o olho no pequeno aviso atrás do assento da frente: “Colete salva vidas (sic) embaixo do seu assento” e em inglês: “Life vest under your seat”. Tive um calafrio e me passou pela cabeça: “será que terei que usar esse colete, visto que a viagem está se realizando com tanto atraso e isso seja um mau presságio?” Como na hora de decolar, sempre rezo pedindo a proteção divina, me tranquilizei. Também tenho o costume  de rezar muitas vezes o "Santo anjo" durante as viagens. Mais uma razão para não temer viajar. Mas diversas vezes meus olhos se dirigiram para o aviso. Aquilo ficou na minha cabeça tirando meu sossego e me inquietando.

Como eu estava junto à janela, fiquei embevecido apreciando a natureza, quando, de repente, o avião passou a voar acompanhando o rio Amazonas. Que espetáculo! A certa altura avistei a foz de um grande rio. Creio que era o rio Madeira. Havia uma imensa ilha recortada por inúmeros paranás. Vislumbrei também uma cidade na margem esquerda do rio Amazonas - pelo tamanho, penso que seja Itacoatiara. Assim fui me distraindo

Quanto mais alto voa um avião, menos turbulência há, visto que o ar vai perdendo a densidade à medida que se sobe. Os aviões ATR turbo-hélice voam bem mais baixo que os grandes aviões a jato. Consequentemente estão sujeitos a turbulências mais intensas e algumas vezes balançam fortemente, assustando os passageiros. Nem me toquei que poderíamos enfrentar alguma turbulência.

Costumeiramente, durante as viagens dou umas cochiladas. Desta vez, enquanto cochilava, eis que o avião entrou numa grande turbulência e começou a tremer, chacoalhando violentamente. Parecia que iria cair! Houve até quem desse um grito. Abri os olhos e vi: “Colete salva vidas embaixo do seu assento”. Instintivamente levei a mão para o assento, para pegar o salva-vidas. Mas assim como a turbulência apareceu repentinamente, também como por encanto sumiu e nós continuamos a viagem sãos e salvos. E eu voltei a cochilar!

 

Wilmar Santin

 

Manaus, 12 de outubro de 2022.

 

 

 

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Dona Milu

 

Dona Milu e a rondonista Jeanine


Dona Milu

 

Uma das minhas experiências mais encantadoras e emocionantes foi ter atuado em operações do Projeto Rondon. Tive a felicidade de participar quatro vezes de operações nacionais. Já se passaram mais de 40 anos e recordo pessoas e fatos que se tornaram indeléveis na minha memória. Ainda mantenho contato com alguns colegas rondonistas e com pessoas da querida Damianópolis, GO, onde estive três vezes. Aqui quero contar a história de uma pessoa que nunca vou esquecer.

O Projeto Rondon (PRo) foi uma ação do governo federal para atendimento da população carente no interior do país. De 1967 a 1989, o PRo levou estudantes universitários para fazerem trabalhos voluntários pelo Brasil afora. Começou atuando em Rondônia e depois se estendeu por toda a nossa pátria. Mais de 350 mil estudantes participaram de atividades promovidas pelo PRo. É inegável o grande bem que os universitários fizeram em cidades de população carente.

Fui três vezes para o interior de Goiás, a saber, nos anos 1977, 1978 e 1979, sempre no mês de janeiro. Por ter cursado Filosofia, trabalhei na área da educação. Atuei na “colônia de férias” com as crianças, em cursos para professores e em levantamentos estatísticos.

Como eu era seminarista e não havia padre no lugar, passei a celebrar cultos dominicais. Logo correu a notícia de que teria “missa” e que um dos rondonistas era padre. Ver a alegria e o entusiasmo daquele povo na igreja era algo contagiante, tanto é que alguns colegas, que há anos não entravam numa igreja, passaram a participar conosco das orações aos domingos.

Num domingo, após a celebração, apareceu, na pensão onde estávamos, uma senhora idosa conhecida como dona Milu. De estatura alta e magra, usando uma saia comprida até o meio da canela, rosto muito enrugado e na cabeça muitos cabelos brancos, era uma figura singular. Disseram-me que no tempo da seca era uma mulher normal e que fazia todos os serviços da casa, entretanto, no tempo da chuva ficava desorientada, “meio tantã”. Parodiando Machado de Assis, pode-se dizer que não “deitava-se com as galinhas, nem acordava com os galos”, porque passava a noite vagando, descalça, sob a chuva, pelas ruas da cidade. Ela foi até a pensão porque queria saber quem era o padre. A cozinheira, dona Bela, a levou para a sala e apontou para mim dizendo: 

- “É ele!” 

Eu estava sentado num sofá, numa animada conversa com os colegas rondonistas sobre o convescote programado para o lagoão de uma fazenda, após o almoço. Dona Milu, pediu licença, sentou-se ao meu lado e me perguntou: 

- “É o senhor que é o padre?” 

Respondi que ainda não era padre, mas que estava estudando para ser.

Ela insistiu: “Sim, o senhor é o padre! Eu escutei bater o sino. É sinal de que tem padre na cidade. A dona Bela me mostrou que é o senhor!”

Perguntei: “O que a senhora quer com o padre?”

- “Assunta só: eu quero que o senhor faça o casamento da minha neta”.

- “Não posso”, respondi.

- “Pode sim! O senhor é padre e pode fazer casamento!”.

- “Eu não sou padre! Estou estudando para ser padre!”

- “É sim, eu escutei bater o sino da igreja. O senhor vai ter que casar a minha neta.”

Não houve modo de convencer a dona Milu. Como eu tinha percebido que ela não estava “bem das ideias”, para deixá-la contente, marquei o casamento para o sábado seguinte. Assim, ganhei tempo para conversar com a família.

Todos os dias a dona Milu ia conversar comigo sobre o possível casamento. Ela esquecia que tinha sido marcado e desta forma, sem desprezá-la, remarquei o casamento várias vezes até viajar. Não cheguei a conversar com os familiares, mas recebi a informação de que o casalzinho de namorados não queria casar naquele momento, porém, estava querendo  “beber, gota a gota, a taça inteira da celeste felicidade”, como escreveu o maior literato brasileiro.

Numa linda noite de luar fui caçar jia (rã) com um rondonista e um rapaz da cidade chamado Donizete. Porém, enquanto caçávamos vimos aparecer relâmpagos no horizonte e pouco a pouco o céu foi se tornando escuro encobrindo a “rainha da noite”.  O jeito foi retornar para casa para não tomar chuva. Ao chegarmos na praça, era quase meia-noite, encontramos a dona Milu. Estava descalça vagando solitária pela cidade. Paramos para conversar com ela. Contamos que retornávamos da caçada de jia. Ela nos perguntou se tínhamos visto moché (sapo) e se eles estavam brabos, porque o tempo estava relampeando e iria chover. Eu disse que vimos vários e, para brincar, disse que eles estavam muito agitados e que tivemos que correr, porque um moché dos grandes veio saltando furioso em nossa direção. Ela arregalou os olhos mostrando medo e me perguntou:

- “Eles estavam bufando?”

- “Sim, inclusive  pulavam até um metro de altura”, respondi. 

- “Então vou já pra casa porque eles têm raiva de mim e saltam em cima de mim”. E rapidamente foi pra sua casa.

No ano seguinte, fui pela segunda vez àquela localidade com o PRo. Novamente encontrei a dona Milu. Sua neta tinha casado e estava para dar à luz. Chegou o dia da criança nascer, mas não nascia. A estudante de medicina, mais algumas rondonistas e também a parteira da cidade passaram a noite na expectativa de ver o nascimento da criança. Parto difícil, mas finalmente, no decorrer do dia chegou a notícia de que a criança tinha nascido e estava tudo bem. Tenho uma vaga lembrança de que era uma menina.

O tempo passou e, apesar de nunca mais haver encontrado a dona Milu, ela permanece nas minhas boas lembranças e jamais a esquecerei. Mesmo  estando um pouco fora do juízo, ela tinha consciência a respeito da importância do casamento da neta. Não queria ver a neta amancebada, por isso insistia que eu deveria fazer o casamento.

Como entrei nos 70 e tenho minha mãe com 95, termino citando o Papa Francisco: A velhice chega para todos. E assim como gostarias de ser tratado ou tratada no momento da velhice, trata tu os idosos hoje. Eles são a memória da família, a memória da humanidade, a memória do país. Preserva os idosos, que são sabedoria. O Senhor conceda aos idosos que fazem parte da Igreja a generosidade desta invocação e desta provocação. Que esta confiança no Senhor nos contagie. E isto, para o bem de todos, deles, de nós e dos nossos filhos” (Audiência Geral, 1ª/06/2022).

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

Bispo da Prelazia de Itaituba

Itaituba, 19 de outubro de 2022.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Pacto das Catacumbas pela Casa Comum



Pacto das Catacumbas pela Casa Comum


Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana.

Nós, participantes do Sínodo Pan-amazônico, partilhamos a alegria de habitar em meio a numerosos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, migrantes, comunidades na periferia das cidades desse imenso território do Planeta. Com eles temos experimentado a força do Evangelho que atua nos pequenos. O encontro com esses povos nos interpela e nos convida a uma vida mais simples de partilha e gratuidade. Marcados pela escuta dos seus clamores e lágrimas, acolhemos de coração as palavras do Papa Francisco: “Muitos irmãos e irmãs na Amazônia carregam cruzes pesadas e aguardam pela consolação libertadora do Evangelho, pela carícia de amor da Igreja. Por eles, com eles, caminhemos juntos” (1).

Evocamos com gratidão aqueles bispos que, nas Catacumbas de Santa Domitila, ao término do Concílio Vaticano II, firmaram o Pacto por uma Igreja servidora e pobre (2). Recordamos com veneração todos os mártires membros das comunidades eclesiais de base, de pastorais e movimentos populares; lideranças indígenas, missionárias e missionários, leigas e leigos, padres e bispos, que derramaram seu sangue, por causa desta opção pelos pobres, por defender a vida e lutar pela salvaguarda da nossa Casa Comum (3). À gratidão por seu heroísmo unimos nossa decisão de continuar sua luta com firmeza e coragem. É um sentimento de urgência que se impõe ante as agressões que hoje devastam o território amazônico, ameaçado pela violência de um sistema econômico predatório e consumista.

Diante da Trindade Santa, de nossas Igrejas particulares, das Igrejas da América Latina e do Caribe e daquelas que nos são solidárias na África, Ásia, Oceania, Europa e no norte do continente americano, aos pés dos apóstolos Pedro e Paulo e da multidão dos mártires de Roma, da América Latina e em especial da nossa Amazônia, em profunda comunhão com o sucessor de Pedro, invocamos o Espírito Santo, e nos comprometemos pessoal e comunitariamente com o que segue:

1. Assumir, diante da extrema ameaça do aquecimento global e da exaustão dos recursos naturais, o compromisso de defender em nossos territórios e com nossas atitudes a floresta amazônica em pé. Dela vêm as dádivas das águas para grande parte do território sul-americano, a contribuição para o ciclo do carbono e regulação do clima global, uma incalculável biodiversidade e rica sociodiversidade para a humanidade e a Terra inteira.

2. Reconhecer que não somos donos da mãe terra, mas seus filhos e filhas, formados do pó da terra (Gn 2,7-8) (4), hóspedes e peregrinos (1Pd 1,17b e 1Pd 2,11) (5), chamados a ser seus zelosos cuidadores e cuidadoras (Gn 1,26) (6). Para tanto, comprometemo-nos com uma economia integral, na qual tudo está interligado, o gênero humano e toda a criação porque a totalidade dos seres são filhas e filhos da terra e sobre eles paira o Espírito de Deus (Gn 1,2).

3. Acolher e renovar a cada dia a aliança de Deus com todo o criado: “De minha parte, vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, com todos os seres vivos que estão convosco, aves, animais domésticos e selvagens, enfim, com todos os animais da terra que convosco saíram da arca" (Gn 9, 9-10 e Gn 9,12-17) (7).

4. Renovar em nossas igrejas a opção preferencial pelos pobres, em especial pelos povos originários, e junto com eles garantir o direito de serem protagonistas na sociedade e na Igreja. Ajudá-los a preservar suas terras, culturas, línguas, histórias, identidades e espiritualidades. Crescer na consciência de que estas devem ser respeitadas local e globalmente e, consequentemente favorecer, por todos os meios ao nosso alcance, que sejam acolhidas em pé de igualdade no concerto mundial dos demais povos e culturas.

5. Abandonar, como decorrência, em nossas paróquias, dioceses e grupos de toda espécie de mentalidade e postura colonialista, acolhendo e valorizando a diversidade cultural, étnica e linguística num diálogo respeitoso com todas as tradições espirituais.

6. Denunciar todas as formas de violência e agressão à autonomia e direitos dos povos originários, à sua identidade, aos seus territórios e às suas formas de vida.

7. Anunciar a novidade libertadora do Evangelho de Jesus Cristo, na acolhida ao outro e ao diferente, como sucedeu com Pedro na casa de Cornélio: “Vós bem sabeis que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro ou entrar em sua casa. Ora, Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro" (At 10,28) (8).

8. Caminhar ecumenicamente com outras comunidades cristãs no anúncio inculturado e libertador do evangelho, e com as outras religiões e pessoas de boa vontade, na solidariedade com os povos originários, com os pobres e pequenos, na defesa dos seus direitos e na preservação da Casa Comum.

9. Instaurar em nossas igrejas particulares um estilo de vida sinodal, onde representantes dos povos originários, missionários e missionárias, leigos e leigas, em razão do seu batismo, e em comunhão com seus pastores, tenham voz e voto nas assembleias diocesanas, nos conselhos pastorais e paroquiais, enfim em tudo que lhes compete no governo das comunidades.

10. Empenhar-nos no urgente reconhecimento dos ministérios eclesiais já existentes nas comunidades, exercidos por agentes de pastoral, catequistas indígenas, ministras e ministros da Palavra, valorizando em especial seu cuidado em relação aos mais vulneráveis e excluídos.

11. Tornar efetiva nas comunidades a nós confiadas a passagem de uma pastoral de visita a uma pastoral de presença, assegurando que o direito à Mesa da Palavra e à Mesa de Eucaristia se torne efetivo em todas as comunidades. 

12. Reconhecer os serviços e a real diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia e procurar consolidá-los com um ministério adequado de mulheres dirigentes de comunidade.

13. Buscar novos caminhos de ação pastoral nas cidades onde atuamos, com protagonismo de leigos e jovens, com atenção às suas periferias e aos migrantes, aos trabalhadores e aos desempregados, aos estudantes, educadores, pesquisadores e ao mundo da cultura e da comunicação (9).

14. Assumir diante da avalanche do consumismo um estilo de vida alegremente sóbrio, simples e solidário com os que pouco ou nada tem; reduzir a produção de lixo e o uso de plásticos, favorecer a produção e comercialização de produtos agroecológicos, utilizar sempre que possível o transporte público.

15. Colocar-nos ao lado dos que são perseguidos pelo profético serviço de denúncia e reparação de injustiças, de defesa da terra e dos direitos dos pequenos, de acolhida e apoio a migrantes e refugiados. Cultivar amizades verdadeiras com os pobres, visitar as pessoas mais simples e os enfermos, exercitando o ministério da escuta, da consolação e do apoio que trazem alento e renovam a esperança.

Conscientes de nossas fragilidades, de nossa pobreza e pequenez diante de tão grandes e graves desafios, confiamo-nos à oração da Igreja. Que sobretudo nossas Comunidades Eclesiais nos socorram com sua intercessão, afeto no Senhor e, sempre que necessário, com a caridade da correção fraterna.

Acolhemos de coração aberto o convite do Cardeal Hummes para nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo nestes dias do Sínodo e no retorno às nossas igrejas: “Deixem-se envolver no manto da Mãe de Deus e Rainha da Amazônia. Não deixemos que nos vença a autorreferencialidade, mas sim a misericórdia diante do grito dos pobres e da terra. Será necessária muita oração, meditação e discernimento, além de uma prática concreta de comunhão eclesial e espírito sinodal. Este sínodo é como uma mesa que Deus preparou para os seus pobres e nos pede a nós que sejamos aqueles que servem à mesa” (10).

Celebramos esta Eucaristia do Pacto como “um ato de amor cósmico. “Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja de aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo”. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico “a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”. “Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira” (11).

Catacumbas de Santa Domitila 

Roma, 20 de outubro de 2019.


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(1) Homília do Papa Francisco na Missa de abertura do Sínodo, Roma 06-10-2019.

(2) Pacto por uma Igreja servidora e pobre. Catacumbas de Santa Domitila, Roma 16 de novembro de 1965. O Pacto assinado por 42 concelebrantes, recebeu em seguida a adesão de cerca de 500 padres conciliares. 

(3) DAp 98, 140, 275, 383, 396. 

(4) “7 Então o SENHOR Deus formou o ser humano com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e Ele tornou-se um ser vivente. 8 Depois, o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, a oriente, e pôs ali o homem que havia formado”. 

(5) “... vivei no temor o tempo de vossa permanência como migrantes” (1 Pd 1, 17b) e “Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros...” (1 Pd, 2, 11). 

(6) “26 Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine [cuide] sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que se movem pelo chão’. 27 Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou”.

(7) 12 E Deus disse: “Eis o sinal da aliança que estabeleço entre mim e vós e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. 13 Ponho meu arco nas nuvens, como sinal de aliança entre mim e a terra. 14 Quando eu cobrir de nuvens a terra, aparecerá o arco-íris nas nuvens. 15 Então me lembrarei de minha aliança convosco e com todas as espécies de seres vivos, e as águas não se tornarão mais um dilúvio para destruir toda carne. 16 Quando o arco-íris estiver nas nuvens, eu o contemplarei como recordação da aliança eterna entre Deus e todas as espécies de seres vivos sobre a terra”. 17 Deus disse a Noé: “Este é o sinal da aliança que estabeleço entre mim e toda a carne sobre a terra”. 

(8) 34 Então, Pedro tomou a palavra: “De fato”, disse, “estou compreendendo que Deus não faz discriminação entre as pessoas. 35 Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença (At 10, 34-35). 

(9) Cfr DSD 302.1.3

(10) HUMMES, Card. Cláudio, 1ª. Congregação Geral do Sínodo Amazônico, Relação introdutória do Relator Geral, Roma, 07-10-2019 (BO 792).

(11)  Laudato Si’, 237.





quarta-feira, 12 de outubro de 2022

OS 10 MANDAMENTOS DA SERENIDADE – Papa São João XXIII

 


OS 10 MANDAMENTOS DA SERENIDADE

 

Papa São João XXIII

 

1. Só por hoje tratarei de viver exclusivamente este meu dia, sem querer resolver os problemas da minha vida todos de uma vez.

 

2. Só por hoje terei o máximo cuidado com o meu modo de tratar os outros:

— delicado nas minhas maneiras

— não criticar ninguém

— não pretenderei melhorar ou disciplinar ninguém senão a mim.

 

3. Só por hoje me sentirei feliz com a certeza de ter sido criado para ser feliz não só no outro mundo, mas também neste.

 

4. Só por hoje me adaptarei às circunstâncias, sem pretender que as circunstâncias se adaptem todas aos meus desejos.

 

5. Só por hoje dedicarei dez minutos do meu tempo a uma boa leitura, lembrando-me que assim como é preciso comer para sustentar meu corpo, assim também a leitura é necessária para alimentar a vida da minha alma.

 

6. Só por hoje praticarei uma boa ação sem contá-la a ninguém.

 

7. Só por hoje farei uma coisa de que não gosto e se for ofendido nos meus sentimentos, procurarei que ninguém o saiba.

 

8. Só por hoje farei um programa bem completo do meu dia. Talvez não o execute perfeitamente, mas em todo o caso, vou fazê-lo. E me guardarei bem de duas calamidades: a pressa e a indecisão.

 

9. Só por hoje ficarei bem firme na fé de que a Divina Providência se ocupa de mim, mesmo se existisse só eu no mundo – ainda que as circunstâncias manifestem o contrário.

 

10. Só por hoje não terei medo de nada. Em particular, não terei medo de gozar do que é belo e não terei medo de crer na bondade..



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