sábado, 1 de abril de 2023

UMA PESCARIA DIVERTIDA NO RIO CURUÁ


 

UMA PESCARIA DIVERTIDA NO RIO CURUÁ

 

Quem já pescou sabe o quanto é maravilhoso ir à beira de um rio, acampar, pescar, dormir no chão ou em rede, fritar peixe, conversar e contar causos e mentiras... Cansativo é, mas restaura as forças, elimina o estresse e reconforta o ânimo! Cada pescaria tem um encanto próprio que motiva o pescador a querer repetir a experiência! O mágico é que uma pescaria nunca é igual às outras! Cada uma tem um “tchã “ especial, como esta que vou contar. 

A pescaria divertida aconteceu no rio Curuá, no distrito de Cachoeira da Serra, município de Altamira. Sua nascente fica na Serra do Cachimbo e deságua no rio Iriri, que por sua vez é afluente do rio Xingu, tendo uns 450 km de extensão. Onde fui pescar, perto da cabeceira, tem uma largura média entre 20 e 30 m, portanto não é um grande rio para a Amazônia, porém, é bastante piscoso.

Desde novembro do ano passado tínhamos programado a pescaria. Meus amigos Chico, Áureo e Pipoca, que moram em Cachoeira da Serra, estavam vibrando e me provocando com fotos de outras pescarias. Estava combinado para sairmos às 7h da manhã, mas surgiram imprevistos e só nos foi possível sair às 10h30. O Chico estava impaciente e reclamando do Áureo que não chegava. Eu só dizia: “O tempo é nosso! O nosso objetivo é pescar e não nos estressar! A hora que formos está bom!” Ele se acalmou e não deu bronca quando o companheiro chegou.

O rio estava cheio. Faltava menos de meio metro para o nível do Curuá atingir a ponte. Como as chuvas aumentaram nos dias sucessivos, aconteceu a chamada “enchente de São José” e a água passou por cima da ponte. Segundo o Pipoca, todos os anos nos dias que antecedem à festa de São José, chove muito e provoca uma grande inundação. Neste ano sou testemunha deste fenômeno climático.

Levamos duas voadeiras. Logo abaixo da ponte há um bom porto para se colocar as embarcações no rio. O Áureo tinha adquirido muçum e minhoca para isca, em Cuiabá, porém, esqueceu em casa. Por sorte, o Pipoca é bem prevenido e levou uns peixes pegos na pescaria anterior. Também levou minhocas. Assim tínhamos iscas para pescar.

Fiquei na voadeira com o Pipoca de piloto. Na outra ficaram o Áureo de piloto e o Chico. Fomos os primeiros a sair. Descemos até chegar onde há uma balsa, que serve de apoio para pescadores. É muito bem feita. O assoalho é ótimo. Tem uma mesa, pia, uma churrasqueira e cadeiras. O Pipoca preparou o almoço assando carne de porco e fazendo uma salada de tomate e cebola.

Durante o almoço, o cuiabano Pipoca, que é um falador inveterado, sem embatucar contou-nos uma facécia do tempo em que ele pescava no rio Cuiabá. Era a história de uma traíra guaxa. Eu já tinha ouvido falar de bezerro guaxo, ou seja, de terneiro que não tem mãe e é amamentado por outra vaca ou na mamadeira, mas de traíra guaxa... foi a primeira vez! Disse ele que em certa ocasião pescou uma traíra, com anzol nº 16 - conhecido como mosquitinho, por ser o menor de todos os anzóis. Acrescentou que não tinha colocado castor. Mesmo sendo uma traíra muito pequena - na verdade um filhote, ele a colocou no bornal. Quando chegou em casa, viu que ela ainda estava viva. Percebeu que era uma traíra guaxa e que estava desnutrida. Por isso deu-lhe um pouco de leite. Viu que ela bebeu e gostou. Daquele dia em diante passou a alimentar a trairinha com leite e a deixava no quintal junto com as galinhas. Até brincavam de esconde-esconde. Ela foi crescendo e se tornou uma traíra adulta. Então começaram os problemas: a traíra passou a comer os ovos das galinhas e depois a devorar os pintinhos. Pra complicar mais ainda, os vizinhos foram ao IBAMA e fizeram uma denúncia de que ele estava criando um peixe fora d’água. Ele, que não é bobo e não queria levar uma multa, resolveu devolvê-la ao seu habitat natural. Chamou todos os seus amigos pescadores, vizinhos, colegas de escola para assistir a volta da traíra ao rio Cuiabá. Até banda de música ele contratou. Com muita festa e barulho rumou para o rio tendo a traíra nas mãos e lágrimas nos olhos, afinal, após meses dando de mamar pra bichinha, ele tinha se apegado demais a ela. A traíra tinha se tornado um verdadeiro bichinho de estimação. Ao chegar à margem do rio, enxugou as lágrimas, deu um beijo na testa da traíra e a soltou lentamente à flor da água. Ela foi afundando, afundando até desaparecer. Todos bateram palmas e gritaram: “Viva a traíra guaxa!!! Viva o Pipoca!!!”. Mas eis que de repente todos ficaram em silêncio e uma tristeza geral caiu sobre eles: a traíra estava boiando morta! Tinha morrido afogada!!!

Eu não aguentei e gargalhando disse: “O Pipoca é realmente criativo em contar gazopas!”

Depois de almoçar e ouvir esta e outras caraminholas e pérolas lendárias contadas por pescadores, saímos para pescar.

Como o rio estava bastante cheio, a água entrava na mata ciliar formando o chamado igapó. É para lá que os peixes vão, porque ali há comida, principalmente frutas silvestres e insetos. No leito e nas beiradas do rio havia muita correnteza e nada de peixe. Fomos mudando de lugar e nada de beliscar. Nem piranha atacava a isca. Tentávamos pegar mandi com a minhoca e também nada de beliscar.

Se o rio não estava pra peixe, a natureza estava exuberante. Era maravilhoso contemplar as árvores e a vegetação. No céu azul brilhava o astro-rei como todo o seu esplendor, as andorinhas davam um espetáculo todo particular com suas revoadas. Pequenas borboletas de asas amarelas volitavam de uma margem para a outra. Ouvia-se o rumor doce e cantante do repuxo das correntezas. Mas peixe: nada, nada, nada! Parecia que estavam de greve!

Como nem beliscavam, começamos a conversar sobre quem era o "panema" que estava prejudicando a pescaria. Eu logo disse: “Deve ser você, Pipoca, porque no mês passado você pescou aqui no Curuá junto com o Pe. Melquisedeque, que é o maior panema entre os membros do clero do Brasil e quiçá do mundo. E ele passou a “panemice” pra você”. O Pipoca logo protestou: “Eu não, ele foi com o Chico!” Um ficou empurrando para o outro. O Áureo e eu só dávamos risada. 

Infelizmente não dá pra negar: o Pe. Melquisedeque é panema desde que nasceu. Acho até que ele é um dos maiores panemas que nasceram entre os descendentes de Adão e Eva. Ele até gosta de pescar, mas nunca consegue pegar um peixe sequer. Nem mandi, que se fisga sozinho, ele consegue fisgar. Entretanto, na pescaria anterior ele conseguiu pegar um bonito exemplar de surubim. Eu vi a foto. Confesso que duvidei que tinha sido ele quem tinha fisgado. O Pipoca me garantiu que foi ele mesmo. Fiz de conta que acreditava. Seja como for, parece que acabou a “panemice” dele. Porém, se tal aconteceu, ele a passou para seu companheiro de pesca que estava no mesmo barco. Eu tinha entendido que ele estava na voadeira com o Pipoca, mas o Pipoca se defende dizendo que não. Nenhum dos dois quer ser o herdeiro da panemice. Mas, sempre que o Pe. Melquisedeque retorna para uma pescaria, há uma disputa sobre quem vai levá-lo na voadeira, porque ele é gente boa demais!, bonachão, de fala mansa e gostosas gargalhadas, principalmente quando é chamado de panema. Ele entende que é brincadeira e entra no clima com boas risadas.

Os indígenas Apiaká da aldeia Pontal lá do rio Juruema me disseram que pra acabar com a panemice deve-se abraçar o tachizeiro por 10 minutos, deixando a terrível formiguinha tachi picar à vontade. Não há quem aguente suas picadas porque a dor é muito intensa, fica-se com a sensação de que está queimando. Já receitei para o Pe. Melquisedeque abraçar um tachizeiro – a árvore onde as tachis gostam de ficar – mas ele não tem coragem, prefere continuar panema.

Quando se está ali esperando o peixe beliscar, muitas recordações e pensamentos vêm à memória. Por exemplo: outras pescarias em que pegamos muitos tucunarés, cacharas, surubins, pirararas, trairões  pescadas e piranhas. Mas também aparecem pensamentos espirituais e religiosos. Desta vez de repente veio à memória o salmo 64(65), principalmente a última estrofe:

“– As colinas se enfeitam de alegria, * 

e os campos, de rebanhos; 

– nossos vales se revestem de trigais: * 

tudo canta de alegria!”

Vi-me louvando a Deus pela criação. Senti que realmente “tudo cantava de alegria”. 

Pode até parecer coincidência, mas o salmo também menciona chuva – “Visitais a nossa terra com as chuvas, e transborda de fartura. Rios de Deus que vêm do céu derramam águas e preparais o nosso trigo” – e enquanto repassava na cabeça o versículo, pelas 16h30, o Pipoca – interrompendo minha contemplação – me disse: “Vai chover em poucos minutos!”. Eu nem tinha reparado que o céu estava abaçanado por nuvens cor de chumbo, que as nuvens escuras estavam ligeiras e vindo em nossa direção.

Ele começou recolher os anzóis e me estimulou: “Rápido! Rápido! Recolha as linhas! A chuva vai ser torrencial! Nem vai dar tempo de chegarmos na balsa”.

Com as “traias” recolhidas, nos pusemos em movimento subindo o rio.  Nem tínhamos navegado 200 m e já começou a chover com a chuva engrossando logo em seguida. O Pipoca – sempre previdente - tinha levado dois guarda-sóis. Conseguimos nos proteger, no entanto, o Chico e o Áureo, que não foram previdentes, tomaram um banho sem tamanho.

Ainda chovia quando resolvemos ir até a balsa e esperar a chuva passar. Os dois “pintos molhados” estavam tremendo de frio. O Áureo disse: “Pena que não temos uma cachaça pra ajudar esquentar”. O Pipoca, que é previdente como as cinco virgens da parábola (Mt 25,1-13), tinha levado uma garrafinha com a danada. Ele é tão esperto que, para ninguém saber que ele leva cachaça, colocou-a numa garrafa plástica de meio litro comprada em Aparecida do Norte com a imagem de Nossa Senhora, simulando assim que é água benta. O Áureo foi o primeiro a tomar. Logo foi dizendo: “É muito fraca” e tomou o dobro para poder esquentar. Realmente havia evaporado muito do álcool. Mesmo assim eles puderam se esquentar e evitar a gripe.

Na balsa começamos a lamentar que não tínhamos pego nem um mandizinho sequer. Eu recordei o que aprendi com o meu amigo José Bissone de Curitiba: “numa pescaria peixe é um detalhe, detalhe importante mas um detalhe. O principal deve ser esfriar a cabeça, descansar a mente, desestressar, tomar uma cervejinha, conversar e contar vantagens de outras pescarias, etc.”

Ao pardejar, como não estava dando nada, resolvemos ir embora antes do previsto. Mas à certa altura da volta, o Pipoca me disse: “Vamos parar aqui porque vou pegar um trairão. Neste lugar até a minha mulher já pegou um trairão”. Confabulei com meus botões: “mais uma bobeira do Pipoca. Só vamos perder tempo”. Mas para não contrariá-lo e com a esperança de que seria eu quem pegaria o trairão para poder contar vantagem, acabei anuindo. No entanto, foi ele quem pegou um, mas não um trairão e sim um peixe-pau, a saber, um enrosco, ou, engate – como dizem os ribeirinhos. Como não conseguiu tirar o peixe-pau d’água, teve que arrebentar a linha perdendo o anzol e chumbada. Quem manda ser teimoso!

Ao retornarmos o Áureo ligou o som do carro e, por coincidência,  a primeira canção foi: “Pescaria no Mogi Guaçu” com Dino Franco e Mouraí[1] cantando. Aproveito para colocar a letra da música:

 

Fui fazer uma pescaria

Lá no rio Mogi Guaçu

Fiquei no rancho do Dida

Caboclo bom pra chuchu

 

Eu levei anzol de vara

Pra pegar piabauçu

O Xô preparou um cóvo

Só de taquara bambu

 

O Chicão encheu a cara

Com o Ocridão Barbaçu

E foram fazer a janta

Saiu tudo meio cru 

 

O Neto tava com fome

Foi aquele sururu

Sei dizer que nós não vimos

Nem o cheiro do tatu 

 

Perguntei pro Zé Cardoso

Se ali dava nhambu

Ele disse: - não é sempre

Mas às vezes canta um jacu

 

Então já me deu vontade

De matar esse jaburu

Mas o nosso tira-gosto

Foi rolinha com angu 

 

Eu fisguei um peixe grande

Bem maior que um jaú

Ele arrebentou o anzol

Da linhada do Dudu 

 

Peguemos de promombó

Muito lambari tambiú

Pescaria igual a essa

É só no Mogi Guaçu

 

É certo que foi uma pescaria baldada, mas rendeu uma boa história ou crônica. No entanto, depois de ouvir esta linda canção, acho que da próxima vez vou convidar meus amigos para irmos pescar no Mogi Guaçu. Com certeza não será outra pescaria inusitada como esta!

 

Wilmar Santin, O.Carm.

Itaituba, 1º de abril de 2023.

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