segunda-feira, 26 de junho de 2023

Não julgueis e não sereis julgados

 


 “Não julgueis e não sereis julgados” (Mt 7,1)


(Segunda-feira da 12ª Semana Comum)

 

 

Uma das célebres frases do famoso monge trapista Thomas Merton é: “A distância mais longa é aquela entre a cabeça e o coração!” Isto nos leva à dedução de que nem tudo aquilo que vemos ou ouvimos chegará ao nosso coração, porque, devido ao longo caminho, antes de chegar já será esquecido ou deixado de lado.

Isto pode acontecer também conosco quando lemos ou escutamos a Palavra de Deus. Nem sempre ela chega ao nosso coração. Na missa, a maioria das vezes a Palavra entra por um ouvido e sai pelo outro. Isto pode suceder com o Evangelho apenas proclamado.

O texto de hoje é a parte do Sermão da Montanha em que Jesus  ensina como deve ser a vida em comunidade (Mt 7,1-12). Nesta parte, ele estabelece algumas regras para uma nova forma de convivência comunitária de seus discípulos, que tem seu ponto alto com a chamada regra de ouro: “Tudo quanto quereis que os outros vos façam, fazei também a eles” (Mt 7,12). 

A primeira norma é “Não julgueis e não sereis julgados”. É uma exigência muito contundente e parece que em geral não se enraíza bem no nosso coração. Por isso, se nos auto-observarmos, poderemos constatar que a maioria tem o vício de julgar e falar mal dos outros. Com um pouco de observação, é muito fácil perceber que julgar e falar mal de alguém é algo muito mais comum do que se pensa. É normal ouvir essas sentenças: “Esse sujeito não vale nada!”, “Aquele cara aí. Ele tem parte com o demônio!”, “O ciclano não tem onde cair morto, mas fica ostentando!”, “Fulana gasta demais com a cabeleireira!”, “Aquele padre é comunista!” ou “Aquele outro é um vendido, um fascista!”, etc., etc.

O Papa Francisco numa de suas meditações sobre este assunto, frisou: «é muito feio julgar: deixemos o julgamento só a Deus, só a ele!». A nós compete «o amor, a compreensão, rezar pelos outros quando vemos coisas que não são boas», se serve «também falar com eles» para os admoestar se algo parece não estar no caminho certo. De qualquer forma «nunca julgar, nunca», porque «se julgarmos será hipocrisia». Afirmou ainda Francisco, «quando julgamos colocamo-nos no lugar de Deus, isto é verdade, mas o nosso juízo é pobre: nunca, nunca pode ser um verdadeiro julgamento». Porque, «o verdadeiro julgamento é o que Deus faz». E «por que o nosso não pode ser como o de Deus? Por que Deus é Onipotente e nós não? Não, porque ao nosso julgamento falta a misericórdia». E «quando Deus julga, fá-lo com misericórdia».

Na conclusão o Papa sugeriu que pensemos «hoje naquilo que o Senhor nos diz: não julgar, para não ser julgado, a medida com a qual julgarmos será a mesma que usarão para conosco; e, terceiro, olhemo-nos ao espelho antes de julgar». E assim quando temos a tentação de dizer: «ela faz isto, ele faz aquilo», é melhor olhar-se ao espelho antes de falar. Caso contrário, «serei um hipócrita — reiterou Francisco — porque me coloco no lugar de Deus». E contudo «o meu julgamento é pobre: falta algo tão importante que o juízo de Deus possui, falta a misericórdia». O Senhor, auspiciou o Papa, «nos faça compreender bem estas coisas».[ [1] ]

O Papa Francisco diz que, além o caminho da cabeça ao coração, a Palavra de Deus deve percorrer mais um caminho dentro de nós: do coração para as mãos, ou seja, para a ação. Deve ser escutada (ou lida) e enviada para o coração; ao chegar ao coração deve ser meditada e rezada e depois enviada às mãos, às boas obras. Eis o percurso da Palavra de Deus: dos ouvidos ao coração e às mãos.[ [2] ]

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

Belém, 25 de junho de 2023.



[1] Meditação na Casa Santa Marta, 20 de junho de 2016.

[2] Cf. Audiência Geral, 31 de janeiro 2018.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Salpicado de cruzes toscas e negras

  


Salpicado de cruzes toscas e negras

 

 

Ao ler o livro “Entre as Ninfeias” de João Marques de Carvalho (1866 — 1910), publicado no ano de 1896, em Buenos Aires, o conto “O cemitério da floresta” mexeu com meus sentimentos. As reminiscências e reflexões do autor levaram-me a um certo confrangimento interior e fez-me recordar de alguns cemitérios e de alguns conhecidos e amigos que já estão na eternidade.

Marques de Carvalho narra que estava num barco viajando pelo rio Amazonas. A súbitas avista a imagem de um cemitério que o impactou e o levou a algumas ponderações: “Cortada em rápido declive sobre a beira da água, em meio à floresta densa, abandonada de todos, uma clareira fazia-se abrupta e essa clareira era um cemitério, um pequeno campo santo solitário e melancólico, — simpático todavia, — salpicado de cruzes toscas e negras!

A expressão de que o cemitério era uma clareira “abandonada de todos”, produziu em mim a sensação de que era um cemitério abandonado e se tornou maior com o reforço: “De quem são aqueles despojos materiais ali inumados, longe dos centros de povoação, roubados ao conhecimento mundano, subtraídos à vaidade dos homens, entregues à terra com toda a simpleza das grandes devoluções pungentes, restituídos à obscuridade do nada para sempre, para sempre furtados à última recordação marmórea que lhes lembrasse o nome na derradeira falsidade dos epitáfios campanudos?"

Enquanto lia o conto, aflorou em minha memória um cemitério, situado à margem esquerda do rio Amazonas, abaixo de Manaus e da pequena vila Jatuarana. Fui lá pescar e avistei, na margem que desbarrancava, um cemitério no meio da mata. Na ocasião deu-me uma grande angústia pelo estado de abandono daquele campo santo. Cruzes, sem nomes, pensas no barranco, que certamente na enchente seguinte cairiam. Aquelas covas desapareceriam para sempre. A memória daquelas pessoas se perderia. Constantemente aquela imagem me vem à mente.

Ao visitarmos qualquer cemitério, é normal encontrarmos túmulos bem cuidados com flores, coroas e sinais de que há pessoas que curam com esmero a última morada do ente querido. Mas também vemos covas e sepulcros bastante ou totalmente descuidados e sem sequer uma indicação de quem está ali. Esta realidade me  faz recordar o livro bíblico do Eclesiástico. Diz o autor sagrado: “Vamos fazer o elogio dos homens famosos, nossos antepassados através das gerações. Outros não deixaram lembrança alguma, desaparecendo como se não tivessem existido. Viveram como se não tivessem vivido, e seus filhos também, depois deles. Mas estes, ao contrário, são homens de misericórdia; seus gestos de bondade não serão esquecidos. Eles permanecem com seus descendentes; seus próprios netos são a sua melhor herança. A descendência deles mantém-se fiel às alianças, e, graças a eles, também os seus filhos. Sua descendência permanece para sempre, e sua glória jamais se apagará” (Eclo 44,1.9-13).

O ser humano é o único animal que sepulta seus mortos de forma ritualizada. Alguns estudiosos afirmam que essa tradição remonta a no mínimo 130.000 anos, ou seja, ao tempo dos neandertais. Sei lá, mas é certo que “enterrar os mortos” é a 7ª obra de misericórdia. Só para refrescar a memória: “As obras de misericórdia são as ações caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais” (Catecismo da Igreja Católica, 2447).

 As 7 Obras de misericórdia corporais são:

1) Dar de comer a que tem fome; 

2) Dar de beber a quem tem sede; 

3) Dar pousada aos peregrinos; 

4) Vestir os nus; 

5) Visitar os enfermos; 

6) Visitar os presos 

7) Enterrar os mortos.   

As 7 Obras de misericórdia espirituais são:  

1) Ensinar os ignorantes;  

2) Dar bom conselho;  

3) Corrigir os que erram;  

4) Perdoar as injúrias;  

5) Consolar os tristes;  

6) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; 

7) Rezar a Deus por vivos e defuntos.

Já passei por muitas aldeias indígenas e só vi 2 cemitérios: um na Missão São Francisco do rio Cururu e outro na aldeia Fortaleza no rio Andirá. Os dois são totalmente diferentes e expressam maneiras até opostas de ver o sepultamento. O cemitério da Missão (foto acima) é todinho limpo, a saber, ali não há árvores ou arbustos nem grama. Só há os montes de terra indicando as covas e cruzes com os nomes dos mortos – a maioria com as datas de nascimento e morte. Em torno de cada cova, há como que uma cerca de pedras demarcando-a. Não há um túmulo sequer. Todos foram sepultados diretamente na terra, inclusive um irmão franciscano e 2 freiras. São os Munduruku que sepultam seus mortos naquele cemitério.

Na aldeia Fortaleza do rio Andirá, os Sateré-Maué sepultam seus mortos num cemitério situado contíguo à aldeia na mata. Nem se percebe que é um cemitério, porque não se vê qualquer cova, nem cruzes ou nomes. No entanto, disseram-me que colocam uma cruz de madeira quando enterram alguém, mas depois que esta apodrece, não a repõem. Apesar de passar do lado algumas vezes, só fiquei sabendo que era ali o cemitério, porque perguntei. Não perguntei se eles costumam fazer alguma oração ou alguma cerimônia religiosa para o enterro de um membro da aldeia. Na Missão certamente se faz as Exéquias oficiais da Igreja Católica, uma vez que lá moram padres e irmãs e todos são batizados. 

Tenho conhecimento da existência de dois cemitérios de ribeirinhos no rio Tapajós. Saindo de Itaituba e subindo o rio Tapajós, em duas vilas, que se despopularizaram, há dois cemitérios abandonados. O primeiro é o cemitério da antiga vila Barreirinha, situada uns 30 km de Itaituba – via rodovia Transamazônica, e o segundo no porto Buburé, 70 km de Itaituba. Não conheço nenhum dos dois. Só ouvi falar que estão abandonados. Na Barreirinha fui uma vez, mas de noite e não deu para observá-lo. Com a instalação de uma fábrica de cimento, os moradores foram transferidos para uma nova vila em outro local ou simplesmente saíram de lá. Apenas restam a capela e o cemitério. Na capela é celebrada anualmente uma missa. O porto Buburé teve a sua importância no passado, mas atualmente só é usado pela população ribeirinha, que também diminuiu muito, para ir a algumas balsas-draga de garimpo e pelos os indígenas Munduruku de algumas aldeias que estão acima do porto. Também pescadores, como eu, iniciam ali sua aventura para evitarem a passagem pelas perigosas cachoeiras de São Luís. Sei que há um cemitério e que está abandonado, sendo que a mata já tomou conta. Esses dois cemitérios não correm o risco de desaparecerem por desbarrancamentos como o mencionado acima, visto que estão numa parte alta e um pouco distante da margem do rio.

No cemitério de Nova Londrina, onde nasci, tenho meu pai e meu irmão mais velho sepultados. Sempre que vou ao túmulo deles, faço um giro pelo cemitério olhando os sepulcros. Bate uma grande saudade que parece ficar entrelaçada com os ramos de cada árvore. Sempre me impressiono com o número de amigos e conhecidos que já estão nas mãos de Deus. Por crer na ressurreição, ao visitar um cemitério sempre faço uma oração por aqueles que estão ali sepultados. O fundamento para rezar pelos mortos está no segundo livro dos Macabeus. Este livro sagrado, conta que no dia seguinte à batalha contra Górgias, governador da Iduméia, Judas Macabeu determinou “que seus homens recolhessem os corpos daqueles que tinham morrido na batalha, a fim de sepultá-los ao lado dos parentes, nos túmulos de seus antepassados”. Então fizeram uma coleta e a enviaram a Jerusalém para que fosse oferecido um sacrifício pelos pecados dos soldados mortos. Para justificar a coleta e a oração pelos mortos, o livro bíblico sentencia: “Ele agiu com grande retidão e nobreza, pensando na ressurreição. Se não tivesse esperança na ressurreição dos que tinham morrido na batalha, seria coisa inútil e tola rezar pelos mortos. Mas, considerando que existe uma bela recompensa guardada para aqueles que são fiéis até a morte, então esse é um pensamento santo e piedoso. Por isso, mandou oferecer um sacrifício pelo pecado dos que tinham morrido, para que fossem libertados do pecado” (2Mac 12,43-45).

Li que nas regiões elevadas no Himalaia, há o costume de se fazer o chamado “funeral nos céus”. Trata-se de esquartejar o corpo do falecido e dar os pedaços aos abutres. É a solução que encontraram para dar um destino aos corpos, uma vez que o chão rochoso, cheio de pedras e congelado dificulta fazer a cova e a cremação seria muito difícil, devido à ausência de árvores que poderiam servir como lenha.

Esta prática, por mais repugnante que possa parecer, também é uma medida para impedir que as doenças se espalhem. Além disso, a religião budista, ali professada, ensina que a alma já migrou para outro domínio e o corpo é apenas um invólucro vazio. Os budistas veem isso como um ato sagrado, que sustentará a vida de outro ser vivo.

Para mim quando se fala em cemitérios, não é possível ficar sem lembrar das catacumbas em Roma, onde os cristãos enterravam seus mortos. Há em torno de 60 catacumbas mortuárias em Roma e arredores. Visitei três catacumbas várias vezes. A que mais visitei foi a de São Calisto. Mas também as de São Sebastião e Domitila. As três estão muito próximas uma da outra na via Ápia. A maior delas é a de São Calisto e ali se encontram os túmulos de diversos papas dos séculos II ao IV. Foi abandonada durante o século IX e redescoberta em 1854.

Em certa ocasião, há mais de 50 anos, eu estava numa kombi com escoteiros, tendo como motorista um padre alemão chamado Frei Jerônimo. Ele sempre foi muito cauteloso na condução de um veículo. Entramos numa rua preferencial. Ao chegamos no primeiro cruzamento, ele diminuiu a velocidade ao ponto de quase parar. Olhou para um lado e outro, como não viu nenhum carro se aproximando, seguiu em frente. Um dos escoteiros disse: 

- “Frei, nós estamos numa rua principal e temos a preferência!” 

- “Os cemitérios estão cheios de gente que tinha preferência no trânsito!”, respondeu o frei, sem nem olhar para trás.

Pensando bem, ao constatar que no trânsito urbano e nas estradas há tantos motoristas “barbeiros” ou irresponsáveis, é bom sempre se recordar o provérbio popular: “Cautela e caldo de galinha não fazem mal pra ninguém!”, porque senão o nosso destino será um cemitério mais cedo do que se espera.

Em julho de 1981 me encontrava em Princesa Isabel, PB, e fui fazer campanha vocacional numa capela com um grupo de carmelitas. Após a missa, fomos almoçar numa casa bem próxima ao cemitério. Antes do almoço alguém, olhando para o cemitério, disse: 

-“Esta é a primeira vez que vejo um cemitório!

Logo surgiu a pergunta: 

- “Que negócio esse, um cemitório?” 

O outro respondeu: 

- “É um mictório junto a um cemitério!” 

Caímos na gargalhada. É, dá pra fazer humor com cemitério sem ser tétrico ou pavoroso!

Rodou nas redes sociais um vídeo com uma canção cantada por Elton John, em inglês, mas com a tradução escrita em português. Algumas pessoas, que sabem a língua de William Shakespeare, me disseram que a tradução não correspondia às palavras cantadas. O texto da “tradução” me agradou e me levou a refletir sobre o comportamento de muitas pessoas diante de um morto e sobre o que fazem quando vão ao cemitério: levam flores e coroas. Isso serve para manifestar o sentimento que se tem em relação ao extinto. O texto fala por si só, sem necessidade de comentários: 

Você já percebeu o quanto o ser humano é estranho?

Pare para pensar! O ser humano briga com os vivos,

Mas leva flores para os mortos.

Lança os vivos ao nada,

Mas pede um lugar aos mortos.

Se afasta das pessoas quando vivas,

Mas quando essas pessoas morrem,

Se agarram desesperados nas lembranças

dos momentos que passaram ao lado delas.

Pois é, o ser humano é estranho.

O ser humano fica anos sem conversar com um vivo,

Mas se desculpa e faz até homenagem quando este morre.

Não tem tempo pra visitar quando a pessoa está viva,

Mas tem tempo até o dia todo 

Para ir e ficar no funeral desta pessoa.

Critica, fala mal, ofende quando a pessoa está viva,

Mas a santifica quando ela morre.

Não liga, não abraça, não se importa com os vivos,

Mas se autoflagela quando estes morrem.

Aos olhos cegos dos homens, 

O valor do ser humano está na sua morte e não na sua vida.

E sabe qual é a explicação de tudo isso?

Por que os mortos recebem mais atenção, carinho,

Passam a ser notados e recebem flores?

Porque o remorso é e sempre foi mais forte que a gratidão!

É bom pensarmos sobre isso enquanto estamos vivos...

A vida é um sopro!

Hoje estamos vivos, amanhã podemos não estar mais...

Então valorize quem você ama.

Não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje!

Ame, perdoe, seja feliz ao lado da sua família, dos seus amigos...

Pare de criar confusão por coisas tão pequenas!

Lembre-se que a vida é um sopro!

Antes de homenagear quem já morreu,

Aprenda a valorizar quem está ainda vivo,

Porque depois que a pessoa vai embora

Até os defeitos viram saudades...

Lembre-se o maior presente que você pode dar a alguém 

É o seu tempo, a sua atenção, o seu carinho, o seu interesse

Faça isso antes que seja tarde demais....”

Vamos reverenciar os nossos mortos, mas muito mais vamos caprichar no relacionamento com os vivos, visto que Jesus Cristo, nosso Salvador, sentenciou: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,34-35)

 

+ Wilmar Santin, O.Carm.

 

 

 

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