segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Dona Milu

 

Dona Milu e a rondonista Jeanine


Dona Milu

 

Uma das minhas experiências mais encantadoras e emocionantes foi ter atuado em operações do Projeto Rondon. Tive a felicidade de participar quatro vezes de operações nacionais. Já se passaram mais de 40 anos e recordo pessoas e fatos, que se tornaram indeléveis na minha memória. Ainda mantenho contato com alguns colegas rondonistas e com pessoas da querida Damianópolis, GO, onde estive três vezes. Aqui quero contar a história de uma pessoa que nunca vou esquecer.

O Projeto Rondon (PRo) foi uma ação do governo federal para atendimento da população carente no interior do país. De 1967 a 1989, o PRo levou estudantes universitários para fazerem trabalhos voluntários pelo Brasil afora. Começou atuando em Rondônia e depois se estendeu por toda a nossa pátria. Mais de 350 mil estudantes participaram de atividades promovidas pelo PRo. É inegável o grande bem que os universitários fizeram em cidades de população carente.

Fui três vezes para o interior de Goiás, a saber, nos anos 1977, 78 e 79, sempre no mês de janeiro. Por ter cursado Filosofia, trabalhei na área da educação. Atuei na “colônia de férias” com as crianças, em cursos para professores e em levantamentos estatísticos.

Como eu era seminarista e não havia padre no lugar, passei a celebrar cultos dominicais. Logo correu a notícia de que teria “missa” e que um dos rondonistas era padre. Ver a alegria e o entusiasmo daquele povo na igreja era algo contagiante, tanto é que alguns colegas, que há anos não entravam numa igreja, todo domingo participavam conosco nas orações.

Num domingo, após a celebração, apareceu, na pensão onde estávamos, uma senhora idosa conhecida como dona Milu. De estatura alta e magra, usando uma saia comprida até o meio da canela, rosto muito enrugado e na cabeça muitos cabelos brancos, era uma figura singular. Disseram-me que no tempo da seca era uma mulher normal e que fazia todos os serviços da casa, entretanto, no tempo da chuva ficava desorientada, “meio tantã”. Parodiando Machado de Assis, pode-se dizer que não “deitava-se com as galinhas, nem acordava com os galos”, porque passava a noite vagando, descalça, sob a chuva, pelas ruas da cidade. Ela foi até a pensão porque queria saber quem era o padre. A cozinheira, dona Bela, a levou para a sala e apontou pra mim dizendo: 

- “É ele!” 

Eu estava sentado num sofá, numa animada conversa com os colegas rondonistas sobre o convescote programado para o lagoão de uma fazenda, após o almoço. Dona Milu, pediu licença, sentou-se ao meu lado e me perguntou: 

- “É o senhor que é o padre?” 

Respondi que ainda não era padre, mas que estava estudando pra ser.

Ela insistiu: “Sim, o senhor é o padre! Eu escutei bater o sino. É sinal de que tem padre na cidade. A dona Bela me mostrou que é o senhor!”

Perguntei: “O que a senhora quer com o padre?”

- “Assunta só: eu quero que o senhor faça o casamento da minha neta”.

- “Não posso”, respondi.

- “Pode sim! O senhor é padre e pode fazer casamento!”.

- “Eu não sou padre! Estou estudando para ser padre!”

- “É sim, eu escutei bater o sino da igreja. O senhor vai ter que casar a minha neta.”

Não houve modo de convencer a dona Milu. Como eu tinha percebido que ela não estava “bem das ideias”, para deixá-la contente, marquei o casamento para o sábado seguinte. Assim, ganhei tempo para conversar com a família.

Todos os dias a dona Milu ia conversar comigo sobre o possível casamento. Ela esquecia que tinha sido marcado e desta forma, sem desprezá-la, remarquei o casamento várias vezes até viajar. Não cheguei a conversar com os familiares, mas recebi a informação de que o casalzinho de namorados não queria casar naquele momento, porém, estava querendo  “beber, gota a gota, a taça inteira da celeste felicidade”, como escreveu o maior literato brasileiro.

Numa linda noite de luar fui caçar jia (rã) com um rondonista e um rapaz da cidade chamado Donizete. Porém, enquanto caçávamos vimos aparecer relâmpagos no horizonte e pouco a pouco o céu foi se tornando escuro encobrindo a “rainha da noite”.  O jeito foi retornar pra casa para não tomar chuva. Ao chegarmos na praça, era quase meia-noite, encontramos a dona Milu. Estava descalça vagando solitária pela cidade. Paramos pra conversar com ela. Contamos que retornávamos da caçada de jia. Ela nos perguntou se tínhamos visto moché (sapo) e se eles estavam brabos, porque o tempo estava relampeando e iria chover. Eu disse que vimos vários e, para brincar, disse que eles estavam muito agitados e que tivemos que correr, porque um moché dos grandes veio saltando furioso em nossa direção. Ela arregalou os olhos mostrando medo e me perguntou:

- “Eles estavam bufando?”

- “Sim, inclusive  pulavam até um metro de altura”, respondi. 

- “Então vou já pra casa porque eles têm raiva de mim e saltam em cima de mim”. E rapidamente foi pra sua casa.

No ano seguinte, fui pela segunda vez àquela localidade com o PRo. Novamente encontrei a dona Milu. Sua neta tinha casado e estava para dar à luz. Chegou o dia da criança nascer, mas não nascia. A estudante de medicina, mais algumas rondonistas e também a parteira da cidade passaram a noite na expectativa de ver o nascimento da criança. Parto difícil, mas finalmente, no decorrer do dia chegou a notícia de que a criança tinha nascido e estava tudo bem. Tenho uma vaga lembrança de que era uma menina.

O tempo passou e, apesar de nunca mais haver encontrado a dona Milu, ela permanece nas minhas boas lembranças e jamais a esquecerei. Mesmo  estando um pouco fora do juízo, ela tinha consciência a respeito da importância do casamento da neta. Não queria ver a neta amancebada, por isso insistia que eu deveria fazer o casamento.

Como entrei nos 70 e tenho minha mãe com 95, termino citando o Papa Francisco: A velhice chega para todos. E assim como gostarias de ser tratado ou tratada no momento da velhice, trata tu os idosos hoje. Eles são a memória da família, a memória da humanidade, a memória do país. Preserva os idosos, que são sabedoria. O Senhor conceda aos idosos que fazem parte da Igreja a generosidade desta invocação e desta provocação. Que esta confiança no Senhor nos contagie. E isto, para o bem de todos, deles, de nós e dos nossos filhos” (Audiência Geral, 1ª/06/2022).

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

Bispo da Prelazia de Itaituba

Itaituba, 19 de outubro de 2022.

2 comentários:

  1. Nossa minha bizavó, Parabéns otima materia. Show!!!!!

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  2. Olá sou o Cleiton, por favor preciso falar com você que fez esta postagem, me ligue (62)99666.5282 estamos grato pela história e pela foto

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