sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Eu daria tudo que eu tivesse pra voltar aos dias de criança


 

 

 “Eu daria tudo que eu tivesse pra voltar aos dias de criança” (Ataulfo Alves)

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

 

Assim como o grande Ataulfo Alves, muitas vezes também tenho o desejo de voltar aos dias de criança. Porém, voltar aos dias de criança só seria possível acionando a memória ou deixar-me guiar pelas asas da saudade ou num filme, como o “De volta para o futuro”. Como não tenho a capacidade de “voltar ao futuro”, vou voltar aos belos e inesquecíveis anos da minha infância e garimpar, no filão das recordações, algumas reminiscências dos melhores anos da vida - e tentar tanto quanto possível revivê-las no mundo mágico da imaginação. 

Deixando a poesia e os desejos de lado, é bom frisar que aquilo que vivemos não volta mais. Se tentarmos repetir as nossas experiências, poderemos nos frustrar, porque nunca serão iguais pelo simples fato de que nós não somos mais os mesmos. É como ensinou o filósofo pré-socrático, Heráclito de Éfeso: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem!”.

Estamos sempre em contínua mudança. Cada dia nos tornamos pessoas novas e, apesar de não percebermos, já somos pessoas diferentes do que fomos no dia anterior. Aquilo que nos é agradável, nós queremos que se prolongue no tempo e que nunca termine. Outro dia, uma menina me disse que não queria crescer, queria ficar para sempre criança. Ela deve estar vivendo uma infância muito feliz e sabe que é feliz, mas vai crescer e deixará de ser criança, querendo ou não.

Machado de Assis publicou um conto com o título “A Segunda Vida”. Usou sua prodigiosa imaginação para descrever como poderia ser a vida de uma pessoa, se ela voltasse a nascer com a experiência que tinha quando morreu. Com a categoria que Deus lhe deu, narra a história de um homem que foi conversar com um padre, ou melhor, com um monsenhor. O homem começou contando que tinha morrido aos 68 anos, mas que foi reenviado “à terra para cumprir uma vida nova”. Ele só aceitou voltar com a condição de que devia nascer experiente. Segundo suas próprias palavras, sua nova vida estava sendo só aborrecimentos e frustrações:

— “Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creio que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas”.

Ao reler este conto, recordei uma maravilhosa experiência que tive em maio de 2012 no rio Tapajós entre os indígenas Munduruku, na comemoração dos 100 anos da Missão São Francisco do rio Cururu. Foi organizado um mutirão de visitas missionárias às aldeias dos outrora “cortadores de cabeças” antes do encerramento das comemorações do centenário. Foram recrutados 35 missionários, entre padres, religiosos/as e leigos, e enviados 2 a 2. Tive como companheiro, o meu amigo Jonas Pinheiro, de Curitiba. Visitamos as aldeias Katon no rio Kabitutu e Sai Cinzas à margem esquerda do Tapajós. Depois seguimos até a Missão São Francisco, onde haveria as comemorações finais. Ao sairmos da aldeia Sai Cinzas pelas 7h da manhã, encontramos três jovens índias banhando-se no rio. Uma delas estava com uma criança nascida na semana anterior, “ensinando” a frágil criaturinha a nadar. Segurava-a nos braços e a embalava na água. Ela me pediu para dar uma bênção para o “anjinho” ainda tão tenro. Após abençoá-lo, perguntei se não era arriscado trazer a criança nesta idade para o rio. Disse-me que a criança tem que aprender a gostar do rio desde o dia do nascimento. Fiquei com aquilo na cabeça.

Uma hora mais tarde chegamos na aldeia Boca das Piranhas, situada à margem direita do Tapajós. Paramos para pegar dois missionários. Junto à barranca do rio, havia seis crianças brincando na água com uma alegria exuberante. Pelo tamanho, davam a impressão de que tinham entre 2 e 3 anos ou 4 no máximo. Pareciam pequenas lontras, tal a agilidade: subiam numa árvore, pulavam no rio, nadavam até o barranco, saíam e repetiam ininterruptamente as mesmas ações rindo e gritando. Transmitiam uma felicidade contagiante. Um gaúcho diria: “Estão mais faceiras do que lambari em sanga!” A alegria e a felicidade daquelas crianças me deixaram impactado e renovado. A energia positiva, ali recebida, me ajudou a aguentar as mais de 9 horas de viagem na voadeira, rio acima.

Foram longas aquelas horas no sol, sentado, ou melhor, meio “acrocado”, porque o banco era baixo. Aos poucos foi dando uma dor nas costas, mas a imagem de felicidade daquelas crianças, tão vivazes, fez com que eu recordasse alguns fatos encantadores da minha infância, sobretudo de banhos e pescas no rio Tigre, em Nova Londrina, onde nasci.

Como era gostoso e tentador ir tomar banho no rio nos tempos de infância e adolescência. O pai e a mãe não nos deixavam ir, a não ser que um dos irmãos mais velhos fosse junto. Tinham receio de que nos afogássemos. Nós fugíamos e íamos. Se chegássemos em casa com o calção molhado: a surra era certa. E quantas vezes apanhei por causa disso!

Como na vida é possível dar um jeito em quase tudo, arrumamos um jeito de não chegar em casa com o calção molhado. Passamos a sair da água um pouco antes do anoitecer. Tirávamos o calção e o batíamos contra a parede onde estava a turbina, pra sair o máximo possível de água. Assim dava tempo do calção secar até chegarmos em casa. Mas como nada é perfeito, a parte do elástico ficava molhada. Algumas vezes a mãe ou o pai percebia que o elástico estava molhado. Daí o chinelo comia solto nas nádegas e nas pernas. Era o costume da época!

Por falar em surra, quando penso nas que levei, constato que não ficou qualquer trauma ou problema psicológico. Lembro que apanhei muito, mas não lembro da dor em si das varadas ou chineladas. Não tenho qualquer revolta por causa das muitíssimas sovas que levei. E quando lembro, a minha reação é dar risada e dizer: “Eu merecia”. A mãe só dava tapas. Só acertava o primeiro, porque quando ia dar o segundo, já tínhamos fugido. E ela ficava dizendo: “venha aqui que eu quero te bater”. Como éramos desobedientes e não queríamos apanhar, corríamos para longe. Ao voltarmos, a raiva da mãe já tinha passado. Por isso não batia mais.

Com o pai não adiantava correr, porque ele nos pegava quando voltávamos. As lapadas dele eram pesadas e prolongadas. Tinha um pé de marmelo no quintal e era dali que ele pegava a vara. Como aquela vara demorava pra quebrar, se é que quebrava! Ele utilizava também seu chinelo de couro. Colocava a nossa cabeça entre suas pernas, consequentemente ficávamos curvados com o traseiro pra cima e pronto pra receber as chineladas. Como era doído!!! Muitíssimas vezes também usava a cinta. As pernas dançavam e saltavam querendo inutilmente escapar das cintadas.

O nosso castigo mais temido não era a surra e sim uma xícara de azeite de oliva, que o pai nos obrigava a tomar. Era da marca Gallo ou Carbonell. Como era ruim!!!! Eu preferia tomar cinco tundas do que uma xícara daquela coisa que custava a descer na garganta e com seu gosto ficando por muito tempo na boca. Não virou trauma e sim um certo bloqueio psicológico, tanto é que até hoje me repugna e evito usá-lo na salada.

Mesmo com as surras e castigos, não desistíamos de ir ao rio tomar banho. O meu grande problema foi aprender a nadar. Não tive a mesma sorte das crianças Munduruku, que são levadas desde o dia do nascimento para serem banhadas no rio. Tive que aprender como os outros meninos aprendiam. O “pulo do gato”, o modo infalível para aprender a nadar era engolir um peixinho vivo. Sim, isso mesmo: engolir um lambarizinho vivo! A crença era de que ele iria nadar dentro do estômago e assim ensinava a criança a nadar. E por incrível que possa parecer, a artimanha funcionava muito bem. No meu tempo todos os meninos aprenderam nadar engolindo pelo menos um peixinho vivo. Essa “técnica” funcionava como alavanca para fazer com que a criança perdesse o medo, que é o principal entrave para alguém aprender a nadar.

Eu custei a perder o medo. Por isso tive que engolir vários guarus. Um dia consegui pegar um lambari maiorzinho. O bichinho desceu fazendo cócegas na garganta. Me senti forte e sem medo. Entrei em águas mais profundas e comecei a nadar que nem um “cachorrinho”. Batendo as mãos e pés consegui chegar ao outro lado do rio. Que alegria e que sabor de vitória! Só quem passou por uma experiência semelhante entenderá essa sensação de superação.

Para nós era normal matar aula pra ir tomar banho no rio. Se o pai ficasse sabendo, a coça era dupla: uma por matar aula e outra por ir ao rio, mas moleque não tem jeito! Sempre havia pessoas linguarudas para contar: “Vi teu filho tomando banho no rio durante o período das aulas”. É, em cidade pequena o controle social é grande!

Diz-se que a primeira pesca nunca se esquece, principalmente se conseguir pegar seu primeiro peixe. Recordo perfeitamente a minha primeira vez: peguei dois peixes! Foi um atrás do outro. Meu irmão mais velho ia pescar e me levou junto. Eu devia ter uns 6 anos. Lembro-me que foi depois da Copa do Mundo de 1958. Está na minha memória o local onde chegamos: era pra cima da indústria de bebidas do Hilário Zilio e havia árvores, portanto, não ficávamos expostos ao sol. Meu irmão se instalou no melhor poço e não me deixou pescar ali, visto que o poço era pequeno. O jeito foi arrumar um local para mim. Subi uns 15 a 20 metros e pressenti que ali era um bom local. O meu faro de pescador não falhou: foi jogar a minhoca na água e já fisguei um dourado cachorro. Como gritei e pulei de alegria! Foi maravilhoso demais pegar aquele primeiro peixe! Joguei o anzol de novo e peguei o segundo. Eu nem acreditava! A sensação era de que estava vivendo momentos de pura magia! 

Meu irmão veio e tomou o meu poço, dizendo: “Você não sabe pescar! Eu vou pescar aí!” Ele era bem maior que eu e se eu engrossasse, além de levar alguns safanões, não seria chamado outras vezes. Claro que eu “afinei”, obedeci e deixei o poço pra ele. Fui ao local onde ele estava. Não peguei mais nada, mas a vitória já era minha! Cheguei em casa radiante, com o troféu na mão, podendo mostrar os dois peixes e contar a história para o pai. Ele profetizou: “Você será um grande pescador!” Acho que ele acertou! Oh felicidade!

Muitas vezes íamos pescar lambari. O material de pesca comprávamos na Casa Japonesa, próxima ao rio. Só tínhamos um único anzol, ou seja, o da vara. Não havia um de reserva! Se enroscava, pulávamos na água para desenroscar. Normalmente pescávamos do lado de baixo da represa. Havia um “ladrão” antes da turbina por onde a água excedente passava formando uma pequena cachoeira. Ali dava muito lambari. Quando chovia, a água ficava barrenta e então só dava bagre e mandi. A isca, para qualquer peixe, era sempre minhoca. 

Na represa, formada para abastecer a turbina geradora de luz para a cidade, havia muito aguapé e daí pescávamos de peneira. Normalmente pegávamos o peixe espada, também conhecido como morenita ou tuvira. Em dois enfiávamos a peneira debaixo do aguapé e a erguíamos; um terceiro tirava o aguapé e os peixes ficavam na peneira. De vez em quando aparecia um bagre ou mandi. Lambari era muito difícil de pegar na peneira. Eles fugiam quando nos aproximávamos. 

Festa mesmo, era quando na peneira havia uma piramboia (muçum, enguia, também chamada de peixe cobra, por parecer com uma). É lisa e difícil de ser contida nas mãos, por isso corríamos para onde havia areia fora da represa. Com areia nas mãos era fácil de pegá-la. De cor preta, ficava branquinha depois que tirávamos as tripas e jogávamos água quente em cima, raspando com uma faca. Era muito saborosa. Recentemente descobri que é uma excelente isca pra pegar pintado.

Em torno de um quilômetro pra baixo da turbina havia um ótimo lugar pra tomar banho. O local era conhecido como “pinguela”, devido a uma árvore caída e atravessada no rio, que possibilitava o trânsito a pé de uma margem para a outra. Quando íamos tomar banho ali, sempre víamos um cardume de curimbas. Este tipo de peixe é muito difícil de pegar com anzol, porque ele chupa a isca sem morder.

Para ir até a pinguela descíamos a avenida até a última rua antes do rio. Na esquina, do lado direito, estava a Casa Japonesa; dobrávamos à esquerda e íamos até o fim, onde na esquina do lado esquerdo residia a família Gehring. Era uma casa grande de madeira com várias janelas e de cor verde. Continuávamos pelo lado da serraria do Sr. Carlos Antonio Gehring, seguindo transversalmente em direção ao rio.

Do outro lado do rio, margem direita, estava a propriedade do Sr. José Raimundo. Ali trabalhava a família de Pedro Agostinho Arraes e Maria Vitória do Nascimento. O filho Agostinho Pedro Arraes, que mais tarde se tornou um famoso judoca e professor de judô, passava pela pinguela todo dia pra ir à escola. Segundo o Agostinho, não se tem notícia de que alguém tenha caído no rio ao passar pela pinguela, com o detalhe de que não havia um corrimão.

Recordo que um pouco pra cima, do outro lado do rio, havia uma família oriunda da Checoslováquia. Meu pai tinha uma grande amizade com o chefe daquela família. Guardo na memória uma conversa do meu pai com o velho tcheco sobre a final da copa do mundo de 1962, quando o Brasil se sagrou bicampeão ao vencer a final justamente contra a Tchecoslováquia. Masopust havia feito 1 x 0 para o tchecos, mas Amarildo, Zito e Vavá viraram o jogo para 3 x 1 a favor da seleção canarinha e o Brasil se tornou bicampeão mundial.

Em relação ao clã tcheco, recordo também do Bodalírio Constantini, que era casado com uma das filhas do casal tchecoslovaco e era poceiro, ou seja, furava poços e fossas. Um dia teve a infelicidade de morrer soterrado devido a um desbarrancamento no poço que estava cavando. Por ser uma pessoa muito querida, causou grande comoção na pequena cidade.

Um dado interessante é que - segundo a minha memória - durante o período da nossa infância não morreu afogada uma criança sequer, na represa e no rio Tigre. Por que será? Certamente o anjo da guarda nos protegeu muito bem! Em casa, a nossa mãe, além do “Santo Anjo”, nos ensinou a rezar uma oração bem curtinha: “Meu anjinho, meu amiguinho, me leve sempre pelo bom caminho”. 

Se recordo as travessuras e loucuras que fazíamos no rio, percebo que, sem dúvida alguma, os anjos da guarda nos protegeram. É só pensar no atrevimento e irresponsabilidade da “molecada” ao pular naquelas águas, de cima do monte de pó de serra, para se ter certeza. No fundo do rio havia paus que foram jogados junto com a serragem vinda da serraria. Era um perigo medonho, mas nunca aconteceu nada. Por que será? Sorte ou proteção divina?

Era encantador ficar observando as jaçanãs, que chamávamos de marrequinhas, andando sobre os aguapés. Essa linda ave de bico amarelo, peito preto, costa marrom e asas, quando abertas, de cor amarela clara - quase branca, me fascinava. Minha vontade era armar uma arapuca para pegá-las e poder levá-las para casa. Infelizmente de vez em quando aparecia um caçador e as matava. Com isso a natureza perdia um pouco do seu encanto, da sua beleza, alegria e esplendor.

Mas as minhas idas ao rio não foram só alegrias, também aconteceram alguns acidentes. Vou contar apenas um, sucedido em janeiro de 1965. Estávamos voltando do banho e passando por uma erosão feita pelas enxurradas que desciam pelas ruas da cidade. Era uma valeta enorme tanto de largura como de profundidade. Não me lembro quem estava caçando, mas “o tal” deu um tiro numa cachopa de abelhas. Todos corremos. Eu comecei a correr olhando pra trás, quando me virei, bati com a testa na quina de uma grande vigota que estava atravessada na valeta. Fez um talho na testa e não parava de sair sangue. Precisava dar pontos, mas meu medo de injeção era e é maior que o estrago provocado por aquela grande valeta. Tenho verdadeiro pavor de levar uma espetada de agulha. Não importa o tamanho da agulha, nem se é anestesia, vacina ... eu evito o máximo que posso. Para obturar um dente sempre digo que é para fazer sem anestesia. Naquela ocasião, meus pais, irmãos e mais alguns conhecidos tiveram um trabalhão pra me levar até o hospital. O experiente médico da cidade, Dr. Olivier Grandene, meu padrinho de crisma, estava de férias. No hospital, os dois estudantes de medicina, que estavam estagiando, ficaram apavorados! Ninguém conseguia me segurar. Recordo que na sala estavam meu pai, minha mãe, meus dois irmãos mais velhos, Valdir e Valdomiro. Também o meu tio, Narciso Santin, os dois estagiários e mais algumas pessoas que foram chegando. Tinha apenas 12 anos, mas eu parecia o Sansão; minha força e resistência era tamanha, que eles não conseguiam me imobilizar. Por fim chegou o Sr. Leitner, que era gordo e bem barrigudo. Ele deitou em cima dos meus joelhos e me imobilizou. Daí o estagiário, que usava um bigodinho, conseguiu anestesiar. Levei 6 pontos!

Teria ainda muitas histórias e peripécias pra contar, creio que estas, por hoje, são suficientes para ajudar o leitor a recordar sua própria infância. Termino com uma poesia que contém muitas coisas com quais me identifico. Não é do Patativa do Assaré, mas muito semelhante à dele.


Menino de rua 

 

Menino de rua 

Que pinta, que esbanja, que rouba laranja no meu quintal 

Que atiça o cachorro, que joga bolinha 

Que engraxa sapato, que xinga a vizinha 

Que vende jornal 

Menino de rua 

Moleque vadio que fuma 

Que nada no rio em dia de sol 

Que grita, que briga 

Que faz arruaças, que estraga telhado 

Que quebra vidraças com seu futebol 

Menino de rua 

Que foge da escola 

Que forma seu bando de gente gabola no becos sem luz 

Que diz nome feio, que gospe e conjus 

Que segue o palhaço 

Que mente, que jura com dedos em cruz 

Menino de rua 

Que pisa na lama, que senta no chão, que suja as calças 

Que põe apelidos 

Que busca recados, que leva bilhetes por vinte centavos 

Menino de rua 

Magrinho e briguento que quase não come 

Que dorme ao relento sem nada queixar 

Que vai ao cinema, que banca o mocinho 

Que canta e assobia, que sofre sozinho, que vive sem lar 

Menino de rua 

De brecha na testa, de calça rasgada 

Que em dia de festa a gente não vê 

Que joga baralho, que pula, que salta 

Que brinca de pique 

Menino Peralta 

Invejo você ! 

Lucia Javorski Bara[ [1] ]

 

Itaituba, 22 de fevereiro de 2023.

 


 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

“De Nazaré pode sair algo de bom?” - 1




“De Nazaré pode sair algo de bom?” - 1

UMA EXPERIÊNCIA NO PRESÍDIO DE ITAITUBA


Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

 

Certo dia recebi um convite para representar a parte católica numa celebração ecumênica no presídio da cidade de Itaituba. Não fui informado sobre quantas e quais outras igrejas tinham sido convidadas. Sempre que posso, aceito com muita alegria convites para participar de celebrações ecumênicas. Rezar juntos é maravilhoso e sempre faz bem! Jesus nos dá o fundamento: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Nessas celebrações sempre estamos reunidos em nome de Jesus.

O presídio, cujo nome oficial é Centro de Recuperação de Itaituba, foi construído há mais de 25 anos com o objetivo de abrigar 190 detentos. Porém, segundo notícias veiculadas na imprensa local, normalmente está lotado e algumas vezes com mais de 400 reclusos. A superlotação provém do fato de que a casa prisional recebe presos dos municípios de Aveiro, Itaituba, Jacareacanga, Novo Progresso, Rurópolis e Trairão.

Todo ano a imagem de Sant’Ana é levada ao presídio antes dos festejos da padroeira. Por isso, estive nesse lugar algumas vezes acompanhando a imagem. Normalmente passamos pelos corredores e entramos nas celas. Porém, uma vez isto não nos foi possível entrar nas celas e nem sequer passar pelos corredores devido ao alto risco de uma rebelião. Fomos levados para a parte de cima das celas e de lá podíamos ver os presos e eles também conseguiam nos ver. Fomos cantando, rezando e mostrando a imagem. Os presos nos olhavam um pouco assustados sem entender o que estava acontecendo. Ao verem a imagem, alguns faziam o sinal da cruz e outros demonstravam uma cara de poucos amigos. 

Há uma ala feminina, mas sempre com poucas detentas. Numa das vezes, uma presa se ajoelhou, rezou, pediu uma bênção implorando para que eu rezasse por ela. No dia da festa de Sant’Ana, dia 26 de julho, ela participou da procissão e conversou comigo dizendo que tinha recebido um indulto e que iria recomeçar a vida. Seis anos depois ela me encontrou na rua e me perguntou se eu a reconhecia. Tive que responder que não. Ela me disse: “Sou aquela presa que o senhor rezou por ela. Me regenerei e constituí uma nova família. Estou muito feliz!” Naquele momento senti uma grande alegria e elevei a Deus uma oração de agradecimento. O Papa Francisco tem razão ao afirmar: “Antes de tudo lembremo-nos de que a conversão é uma graça, portanto, deve ser pedida a Deus com força”. O Sucessor de Pedro também explica que a conversão “Na Bíblia, significa primeiro mudar a direção e a orientação; e depois também mudar a maneira de pensar. Na vida moral e espiritual, converter meios de passar do mal ao bem, do pecado ao amor de Deus”. Aprofunda afirmando que a conversão “envolve a dor pelos pecados cometidos, o desejo de se livrar deles, o propósito de excluí-los da própria vida para sempre. Para excluir o pecado, é preciso também rejeitar tudo o que está ligado a ele: a mentalidade mundana, a superestimação do conforto, do prazer, do bem-estar, das riquezas. O Pontífice conclui: "Nós nos convertemos verdadeiramente na medida em que nos abrimos à beleza, à bondade, à ternura de Deus. Então deixamos o que é falso e efêmero, para o que é verdadeiro, belo e dura para sempre" (Angelus – 06 de dezembro de 2022).

Desta vez quando cheguei em frente ao presídio, havia ali na rua um grupo de evangélicos. Fui conversar com eles e me apresentei. Disseram-me que eram da Congregação Cristã no Brasil. Um deles me pareceu ser do sul do país, por isso perguntei de onde ele era. 

- “Do Paraná!”, respondeu-me. 

- “De que cidade?” 

- “De Maristela!”

- “Maristela, distrito de Alto Paraná?” 

- “Sim”.

Espontaneamente brinquei: - “Mas de Maristela pode sair coisa que presta?” 

Ele não gostou, me olhou com um olhar ameaçador, fechou a cara e não respondeu, dando as costas pra mim. Tentei amenizar dando uma risadinha e dizendo: - “Só sai coisa boa de Alto Paraná ou Paranavaí!” Não teve jeito: continuou com a cara amarrada. Não me preocupei, porque sabia que tudo se resolveria na celebração.

Entramos, conversamos com os dirigentes e funcionários do presídio que foram muito amáveis e manifestaram alegria pela nossa presença. Ofereceram-nos um café com lanche.

A celebração foi realizada no pátio externo ao ar livre. O motivo era a formatura de um grupo de detentos que tinham feito um curso de reciclagem de plásticos. Estavam presentes também o juiz e o promotor. Fui o primeiro a ter a palavra. Usei como texto bíblico  a narrativa do encontro de Jesus com Natanael (Jo 1,29-51). Ao comentá-lo, fiz uma atualização do versículo 46, ou seja, a pergunta de Natanael a Filipe: “De Nazaré pode sair algo de bom?”, interrogando sobretudo os presos mas também as pessoas ali presentes: “Porventura, pode sair algo de bom deste presídio?” Foi um silêncio total! Passei o olhar sobre todos os detentos e concluí com voz potente e segura: “Claro que pode! Vocês em breve vão sair daqui e vão recomeçar a vida. Por isso fizeram este curso de reciclagem. Só depende de cada um de vocês iniciar uma nova fase na vida para não ter que voltar para cá”. Continuei estimulando-os a aproveitarem a liberdade, ao saírem da prisão, para começarem uma vida nova. Citei como exemplo aquela presa que me pediu a bênção, que se regenerou e estava muito feliz. Recordei o que em geral a população pensa em relação aos presos. Repeti a frase de Natanael que duvidava que de Nazaré pudesse sair algo de bom. Acentuei: “De Nazaré saiu Jesus, o nosso Salvador!” Em seguida me dirigi ao homem de Maristela: “Pois é, lá fora eu brinquei com nosso irmão lá do Paraná perguntando se podia sair coisa que presta de Maristela. Quero lhe dizer que eu tinha em mente este versículo do evangelho. Eu não queria desprezar Maristela, o simpático e progressista distrito de Alto Paraná.” O homem, que estava ainda com a cara amarrada, abriu um lindo sorriso. Viramos amigos! Temos nos encontrado várias vezes. Sempre conversamos e comentamos sobre nossas idas ao Paraná. Eu gosto de me encontrar com ele e sinto que ele gosta de se encontrar comigo.

Aí está uma prova de que quando rezamos juntos, nasce amizade, alegria e o mais bonito: passamos a nos tratar como verdadeiros irmãos!

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

02 de fevereiro de 2023.

Festa da Apresentação do Senhor

 

 

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