sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Minha visita ao Sateré-Maué [1]
(A notas estão no final do texto)
Em outubro de 2017 foi realizado um encontro dos indígenas da bacia do Tapajós. O evento foi no Centro de Treinamento da Prelazia de Itaituba. Os Sateré-Maué do alto rio Andirá diretamente não fazem parte da bacia do Tapajós, mas foram convidados porque 27 aldeias destes indígenas estão dentro do município de Aveiro e o rio Tapajós corta este município. Assim vieram 10 [2] representantes dos Sateré-Maué. No final do encontro, eles me convidaram para visitá-los. Prometi que iria até o rio Andirá tão logo encontrasse uma brecha na minha agenda. Foi possível cumprir a promessa mais cedo do que eu esperava, porque já no final de outubro conversei com o Sateré-Maué Leonardo Martins Cardoso, que mora em Itaituba, sobre qual seria o melhor período para realizar a visita. Ele disse que março seria uma época muito propícia porque o rio estaria cheio e isto facilitaria a chegada em todas as aldeias. Por isso marquei a visita para este mês.
Grupo Sateré-Maué que participou do Encontro dos indígenas da bacia do Tapajós em Itaituba

Aqui vou relatar a minha experiência no dia-a-dia. Também darei informações e curiosidades sobre cada aldeia por onde passamos. Como levamos o celular com aplicativos, conseguimos medir distâncias e marcar os pontos de GPS de cada aldeia.
Mas antes darei informações sobre os Sateré-Maué. Começarei informando os vários nomes para designar este povo, que atualmente se autodenominam Sateré-Maué. Indicarei a que grupo linguístico pertencem e contarei um pouco da história deste povo. Resolvi colocar todo o texto do mito sobre a origem dos Sateré-Maué como “Filhos do Guaraná”. O texto é longo, mas vale a pena ler. Darei informações sobre onde estão e alguns dados estatísticos sobre sua situação atual. Pensei em fazer uma pesquisa sobre a participação dos Sateré-Maué na Cabanagem, mas a falta de tempo não me permitiu. Esse assunto fica para uma outra ocasião. Também teria sido bom escrever algo sobre a atuação do padre italiano Henrique Uggé, mas como não me encontrei com ele, não me foi possível obter informações.
Pessoalmente, eu tinha um interesse especial de conhecer os “Maués”. O motivo era porque os carmelitas ajudaram na evangelização deste povo, sobretudo através do grande missionário Frei José Alves das Chagas. Por isso resolvi incluir uma pequena resenha sobre a ligação dos carmelitas com os Sateré-Maué. Como os padres do PIME estão presentes na área desde 1948 e estão fazendo um bonito trabalho com este povo, também vou relatar algo sobre o trabalho deles.





Os Sateré-Maué

Nome
Atualmente eles se autodenominam Sateré-Maué. Mas já foram chamados por missionários, cronistas e naturalistas com os nomes de: Jaquezes, Mabué, Magnazes, Magnés, Magneses, Mahué, Mahués, Malrié, Mangnés, Mangnês, Maragná, Maué, Maués, Maugués, Mauris, Mavoz, Mawés, Orapium.
Sateré significa “lagarta de fogo” e Mawé, “papagaio inteligente e curioso”.

Língua

A língua Sateré-Maué faz parte do tronco linguístico Tupi.[3] O vocabulário Sateré-Maué contém elementos completamente estranhos ao Tupi, mas não se relaciona a nenhuma outra família linguística. Desde o século XVIII, os Sateré-Maué incorporaram numerosas palavras da “Língua Geral” ou “Língua Brasílica” [4].

A maioria dos homens Sateré-Maué atualmente são bilíngues, falando o Sateré-Maué e o Português. Mas, nas aldeias mais afastadas ainda há mulheres e homens que só falam a língua materna.

História

Os Sateré-Maué tem sua origem na área entre os rios Tapajós e Madeira de leste a oeste, e de norte a sul do rio Amazonas à cabeceira do rio Tapajós.

A menção mais antiga dos Sateré-Maué, que se conhece, é de 1669, com a fundação da missão jesuíta na ilha Tupinambarana, atual Parintins. Em 1691, os Maué são mencionados no mapa do Padre Samuel Fritz com o nome de Mabué.

Em 1835, os Sateré-Maué participaram da Cabanagem [5], lutando ao lado dos Munduruku e dos Mura. Epidemias, lutas e perseguições aos que combateram ao lado dos cabanos provocaram deslocamentos desses grupos populacionais de seus territórios ancestrais, inclusive dos Sateré-Maué.

Desde o século XVIII o território dos Sateré-Maué foi gradativamente reduzido. A diminuição do território começou com as tropas de resgate. A diminuição aumentou devido busca das drogas do sertão e a exploração da borracha durante o século XIX e início do XX. Por fim, deve-se colocar também como causas a expansão econômica das cidades de Maués, Barreirinha, Parintins e Itaituba para o interior dos municípios, com o surgimento de fazendas, extração pau-rosa e surgimento de garimpos. As cidades de Maués, Parintins e Itaituba, inclusive, foram fundadas sobres restos de malocas Sateré-Maué.”[6]

Os filhos do Guaraná
Os Sateré-Maué se autorrepresentam como “Filhos do Guaraná”. Foram os primeiros a utilizar o guaraná, na língua Sateré Waraná.
Há várias lendas sobre a origem do guaraná e sua utilização pelos Sateré.[7]

Mais que um produto agrícola, o guaraná é o passado, o presente e o futuro do povo junto ao qual foi encontrado pelos missionários jesuítas que fizeram o primeiro registro histórico de sua ocorrência na região interfluvial Madeira-Tapajós, na segunda metade do século XVII. Constitui, desde então, o marcador étnico por excelência do povo Sateré-Mawé. Além de estar no centro das explicações sobre a sua origem e organização social, o guaraná fez dos Sateré-Mawé o primeiro povo indígena brasileiro na história com um produto próprio, transformado e sistematicamente comercializado, em tempos coloniais e do Império. No Brasil republicano, da virada do milênio, é um dos primeiros que aparece associado aos conceitos e práticas mais avançados na perspectiva dos paradigmas pós-modernos da sustentabilidade, da produção orgânica certificada, do comércio justo e solidário e do desenvolvimento ecossustentável. E o faz sempre investido de uma notável potência de agregação social: originalmente, no seio de uma sociedade tradicionalmente segmentada e, na contemporaneidade, ocupando papel destacado em movimentos colaborativos interinstitucionais nacionais e internacionais. Para os Sateré-Mawé, o seu Waraná nativo é memória e promessa de navegação segura ao longo do tempo.[8]

Alba Lucy Giraldo Figueroa, em seu artigo “Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé”, apresenta uma versão do mito surgimento dos Filhos do Guaraná. A versão foi colhida por Nunes Pereira (NP). Escutou dos narradores Luis Miquiles (LM) e Maria Trindade Lopes (MTL). Por ser muito interessante, o texto será apresentado aqui na íntegra.

“Antigamente, contam, existiam três irmãos: Ocumáató, Icuamã e Onhiámuáçabê. Onhiámuáçabê era dona do Noçoquem, um lugar encantado no qual ela havia plantado uma castanheira. A jovem não tinha marido; porém todos os animais da selva queriam viver com ela. Os irmãos, ao mesmo tempo, a queriam sempre em sua companhia, porque era ela quem conhecia todas as plantas com que preparava os remédios de que precisavam.
“Uma cobrinha, conversando com outros animais, certa vez, disse que Onhiámuáçabê acabaria sendo sua esposa. Foi então espalhar pelo caminho por onde ela passava todos os dias um perfume que alegrava e seduzia. Quando Onhiámuáçabê passou pelo caminho, aspirando o perfume disse: - Que perfume agradável!
“A cobrinha, que estava próxima, disse a si mesma: Eu não dizia? Ela gosta de mim! E, correndo, foi estirar-se mais adiante para esperar a moça. Ao passar ao seu lado, tocou-a, levemente, numa das pernas. E isto só bastou para que a moça ficasse prenhe, porque antigamente, uma mulher, para que isso acontecesse, bastava ser olhada por alguém, homem, animal, ou árvore, que a desejasse como esposa.
“Porém os irmãos de Onhiámuáçabê não queriam que ela se casasse com gente, animal, ou árvore que tivesse filhos, porque era ela quem conhecia todas as plantas com que preparava os remédios de que precisavam” (NP).
“Um dia eles foram procurar com ela o seu remédio para caçar (pussanga). Como ela era a única mulher, naquela época, era quem o preparava. Mas, nesse dia, ela não se prontificou a recebê-los. Por isso, os irmãos foram até ela para lhe pedir que amassasse e lhes entregasse o remédio. Mas dessa vez, o resultado foi diferente: coalhou. No fundo da preparação, se precipitou uma espécie de tapioca. Com isso, os irmãos souberam então que ela estava gestante. E lhe reclamaram por não ter ouvido o conselho que lhe tinham dado, por ter desobedecido. Perguntaram-lhe também quais eram as pessoas com as quais ela tinha topado. Ela não soube responder, pois não dava, nunca, confiança para ninguém” (LM).
“Os irmãos ficaram furiosos. E falaram, falaram e falaram, dizendo que não queriam vê-la com filho” (NP).
“Não mais aceitaram que ela ficasse na mesma casa que eles. Assim disseram: ‘Olha nossa irmã: já que você não escutou o nosso conselho, a gente não vai aceitar você ficar aqui conosco’. Ela, então, saiu, foi fazer a sua própria casinha e lá ficou morando, sozinha, esperando o neném.
“Quando viu que não podia ficar sozinha, convidou três pessoas para lhe acompanhar: a mucura, para que lavasse as suas roupas; o pato, para lhe procurar água no porto; e a saracura, para lhe procurar cogumelos. Essas três pessoas comiam de tudo; traziam-lhe peixe, inclusive, mas a mulher não recebia da mão delas: ela não comia peixe durante o tempo do resguardo. Depois que se recuperou, perguntou às três: ‘Como é que eu faço com vocês? Vocês me ajudaram bastante, qual é o pedido que vocês vão me fazer? Como eu posso recompensar. Vocês querem experimentar a dor de ter um filho?’. Mas as mulheres não responderam. ‘Se quisessem experimentar, como eu…?’, ela perguntou. A mucura então respondeu: ‘eu não quero experimentar a dor de criança’. Por isso que mucura fica com os filhos grudados fora da barriga, guardados em um saco; lá eles ficam mamando. Ela não sente a dor de parto. Assim que era para ser com as mulheres, mas elas não quiseram, por acharem vergonhoso andar desse modo com as crianças, então, o único jeito era sentir a dor do parto, como essa primeira mulher.
“Logo que nasceu a criança de Oniawasap’i, os tios resolveram ir à casa dela para visitar. Chegando lá, perguntaram: ‘Como vai, irmã?’. ‘Aí está a criança’, respondeu ela. ‘Mas… ela tem braços?’, inquiriram os irmãos. ‘Sim, tem ombro, tem corpo de gente’. ‘Então, tudo bem. Já que é assim, pode criar’. Mas eles sentiram e acumularam raiva dela; não gostavam daquela criança. Não demonstravam isso, quando foram visitar parecia tudo bem, pareciam alegres, mas entre eles começaram a falar que esse filho da irmã ia lhes trazer desgostos, lhes causar raiva, caso ele fosse nas suas roças e mexesse com as suas plantas” (LM).
“Logo que pôde falar, o menino desejou comer as mesmas frutas de que os tios gostavam.
A moça contou ao filho que, antes de o sentir nas entranhas, plantara no Noçoquem uma castanheira, para que ele comesse os frutos, mas que os irmãos, expulsando-a da companhia deles, se apoderaram de Noçoquem e não o deixaram comer castanhas.
Além disso, os irmãos da moça tinham entregue o sítio à guarda da Cotia, da Arara e do Periquito. O menino, porém, continuou a pedir a Onhiámuáçabê, mãe dele, que lhe desse a comer as mesmas frutas que os seus tios comiam. Um dia então, Onhiámuáçabê, a moça, resolveu levar o filho ao Noçoquem para comer as castanhas.
Assim, indo a Cotia ao Noçoquem, viu no chão, debaixo da castanheira, as cinzas de uma fogueira, onde haviam assado castanhas. A Cotia correu e foi contar o que vira aos irmãos da moça.
Um deles disse que talvez a Cotia se enganasse, o outro disse que não podia ser verdade.
Discutiram. E, afinal, resolveram mandar o Macaquinho-da-boca-roxa tomar conta da castanheira, a ver se aparecia gente por ali.
O menino que havia comido muitas castanhas e cada vez mais as cobiçava, já conhecendo o caminho do Noçoquem, tornou a ir lá no dia seguinte.
Ora, os guardas no Noçoquem, que tinham ido adiante, com ordens de matar a quem ali encontrasse, viram o menino subir, às pressas, à castanheira.
E, estando próximos, bem próximos, ocultos por outras árvores, tudo observando, correram e foram esperá-lo debaixo da castanheira, armados com uma cordinha para decepar a cabeça do comedor de castanhas. Dando por falta do filho, a mulher já se havia posto a caminho, para buscar, quando lhe ouviu os gritos” (NP).
“Uma caba e uma abelha chegaram contando a Oniawasap’i a notícia do ocorrido, mas ela não acreditou. Então as duas voltaram lá e cada uma delas trouxe um pedacinho da pele do menino para lhe mostrar, mas nem com isso ela acreditou. Elas voltaram novamente e trouxeram um pouco de sangue em uma folha de apekutyhop. Só vendo o sangue a mãe acreditou. Ela foi lá e só encontrou a flecha do menino, ficou, então, muito brava e começou a ralhar os irmãos, querendo se vingar. Foi lá na casa deles e disse: ‘Isso foi o que vocês fizeram?! Se vocês mataram o meu filho foi seguramente porque estavam com fome, então vocês têm que comer o meu filho!. Foi assim que vocês mataram o tio dele mais novo e outro tio mais velho, mataram o próprio pai dele, foram vocês que mataram!’. Ela tinha levado a flecha querendo usá-la, mas não pôde, porque eles a tomaram da sua mão e no lugar lhe deram um fuso de fiar algodão, para fazer rede, e um machado sem cabo. Falaram: ‘Olha, minha irmã, você vai ficar com esse fuso. Isto aqui é que vai servir para você. Isto não!’ E tomaram-lhe a flecha. Ela então disse: ‘Tudo bem! Vocês mataram meu filho, mas não faz mal’ e se virando em direção ao filho, completou: ‘Fica aqui, meu filho, eu vou te cobrir’. Pegou uma folha e o cobriu, pronunciando: ‘erepusunug ehayse o!: faça, falando bonito!’. Assim, ela desejou que algo de muito bom surgisse dele” (LM).
“Oniawasap’i pegou os olhos do menino...” (MTL). “Arrancou-lhe primeiro o olho esquerdo e plantou-o. A planta, porém, que nasceu desse olho não prestava; era a do falso guaraná. Arrancou-lhe, depois, o olho direito e plantou-o. Desse olho nasceu o guaraná verdadeiro” (NP).
“E disse: ‘Meu filho, os teus tios te mataram, mas não penses que irás ficar sozinho, isolado. Tu irás ficar com as palavras dos teus parentes e com as palavras das pessoas que moram no céu. A todos os teus parentes tu irás ensinar. Tu irás ser morekuat [autoridade], tu irás ensinar muita gente a tratar de trabalho. Muita gente vai se juntar para tomar o guaraná. Serão as mulheres mais idosas as que irão ralar o guaraná. Em redor de ti irá se tratar de muitas coisas boas, palestras de trabalho e assim muita gente irá gostar de ti. Porque tu foste gerado antes que a terra estivesse contaminada. Então, tu vais ficar sendo autoridade: morekuat. Tu vais fortalecer muita gente: os morekuat, os tuxauas, portanto tu que serás o Morekuat. Muitas coisas se conseguirão através de ti. Vai parecer que tu estivesses vivo e de tua boca sairão conselhos para muita gente, para os filhos, e com lágrimas nos olhos, os pais vão te usar para aconselhar os seus filhos, teus netos. Cedo da manhã as pessoas vão te usar, vão beber o guaraná, e aquele que souber de alguma coisa melhor, vai explicar e conversar coisas boas” (MTL).
“E continuando a conversa com o filho, como se o sentisse vivo, foi anunciando: Tu, meu filho, tu serás a maior força da natureza; tu farás o bem a todos os homens; tu serás grande; tu livrarás os homens de uma moléstia e os curarás de outras” (NP).
“Logo depois, ela foi-se embora para a sua casa. Lá, ela autorizou um passarinho, o hirut: ‘Vai lá e cante, fale bonito lá para o meu filho!’. Pedia também, dessa forma, que saísse algo de muito bom, a partir do corpo da criança morta” (LM).
“Na terceira vez que o passarinho foi avisá-la de que já tinha alguma coisa dentro da terra, ela foi ver. Chegando lá, o passarinho começou a cantar e ela abriu o túmulo. O que apareceu foram muitas crianças rindo, cantando lá dentro. Ela tinha levado o wirisupakpak, que era muito duro e era para ser o nosso dente. Mas quando essas crianças saíram, pegaram o wirisupakpak e o levaram. Oniawasap’i agarrou um pau como a sua arma, e correu a lhes perseguir, dizendo: ‘Vocês vão ficar correndo assim pelas matas e pelas capoeiras, vocês vão sair andando para um lado e para outro e quando estiverem tratando de trabalho, do plantio do guaranazal, eles vão matar vocês e vocês virarão alimento!’. Ela tinha os transformado em queixadas: ‘Em compensação do dente que vocês levaram, que era para eles [os humanos], eles vão matar vocês!’.
“Ela fechou novamente a sepultura e pediu para o passarinho cantar de novo. E ele cantou e disse: ‘Já estão chegando para cá, e estão cantando’. A mãe foi de novo, abriu e o que tinha lá na sepultura era um pessoal cantando. Na hora que abriu, veio uma moça que falou: ‘Deixa eu olhar os teus filhos’. Ela disse: ‘Não, não vou permitir que você olhe’. Veio outra e também disse: ‘Eu quero espiar’. ‘Não, você pode sair dizendo que os meus filhos não são bonitos’. Tinha gente que insistia, insistia, querendo ver, e ela dizia: ‘Deixem! Vocês vão ver quando estiver fora’. Ela não queria que ninguém olhasse. Quando ela abriu a sepultura, um ahiang [fantasma] olhou por cima da cabeça dela… Nessa hora ia saindo o coatá. Como o ahiang estava olhando para ele, então aquela feiura pegou no coatá. Por isso que ele é muito feio. A mãe, então, bateu no ahiang e o matou. Pegou também o coatá, o puxou e o jogou. Quando ela o jogou, o coatá se agarrou na porta de uma casa próxima. Oniawasap’i, então, o puxou com força e o dedo do coatá se arrancou. Por isso que o coatá não tem o polegar. E o ahiang que ela matou virou a saúva grande, ou wehong [sombra], por ser o wehong desse ahiang. Nesse momento, a mãe disse que, quando o sol estivesse em uma determinada altura, muita gente ia dançar de alegria no seu terreiro. É quando chega o tempo das saúvas voarem, que eles ficam pulando, dançando, quando estão pegando a saúva.
“Ela fechou novamente a sepultura e quando voltou a abrir vieram os kiwa: tapecuim. Ela, logo lhes disse: ‘Fiquem aqui’. Deixou-os no toco de um pau, eles lá ficaram. Ela disse: ‘Quando o sol estiver numa certa altura, os teus parentes vão te agarrar e levar para comer’ [comentário sorridente da narradora: num dia destes juntamos em casa vinte e duas poquecas de kiwa!].
“Ela fechou novamente, até quando o passarinho começou a cantar e disse: ‘he akuara ehayse tuerut emembyt’ [a flauta do teu filho vem cantando muito bonito].  “Ela chegou lá, abriu de novo e encontrou um monte de meninos já perfeitinhos, eram pessoas mesmo. Mas eles eram muito safados e muito branquinhos, pulavam para lá e acolá. A mãe disse então: ‘Eu não pedi para vocês saírem assim, vocês são muito safadinhos’. Eram os wahue, macacos caiararas. Eles foram saindo do túmulo e ela ia dizendo: ‘Vocês vão sair gritando pelas capoeiras, não importa qual seja o tamanho delas’. E fechou de novo.
“O passarinho começou a avisar outra vez e Oniwasap’i veio logo abrir. Ela cuspiu e ficou fazendo bolinhas de terra que eram para fazer os nossos dentes; então, o grilo veio pedir para olhar, no buraco, os filhos de Oniawasap’i. Disse assim: ‘Eu vou olhar para os teus filhos para eles saírem bonitinhos’. Ela preparou toda aquela massa de barro e colocou no filho dela os dentes. Por isso que nossos dentes são muito fracos. O nosso corpo fica perfeito e os dentes se estragam. Se a queixada não os tivesse levado, os nossos dentes não estragariam.
“Perguntaram para ele como ia ser o nome do filho dela. Ela disse que como ele tinha surgido do Moikyt [cobra pequena] e eu o fiz vir novamente, então o nome dele seria Moikyt. Ficou o mesmo nome. Depois foi confirmado para que o nome do seu filho ficasse São Sebastião. Daí, segurou o nome São Sebastião, e quando ele já estava um pouco crescido, essa pessoa que mandou matar foi lá. Ele disse à irmã: ‘Esse aí será o meu, e o nome dele será Adão’. Aí ficou “Adão” e finalmente Mari. Dele que apareceram muitas e muitas descendências do guaraná. De lá que nós viemos. Por isso que ninguém deixa o guaraná.
“Por isso que certos filhos nossos morrem antes de crescer, porque assim ocorreu com esse filho da ‘nossa senhora’, Oniawasap’i” (MTL).[9]

Localização atual

A maior parte dos Sateré-Maué habitam na chamada “TI Andirá-Marau”, localizada na fronteira dos estados do Amazonas e do Pará. Está dentro dos municípios de Barreirinha, Maués e Parintins no Amazonas, e Aveiro e Itaituba no Pará. A maior parte dos Sateré-Maué vivem no Estado do Amazonas e um grupo menor no Pará.



Localização da TI Andirá-Marau

Há também um grupo na “TI Coatá-Laranjal”, no Amazonas. Nesta área habitam Munduruku e Sateré-Maué. Os Munduruku são predominantes. A TI Coatá-Laranjal está situada no município de Borba, AM. Tem uma extensão de 1.153.210 ha, em torno de um quarto do município de Borba. A homologação foi realizada pelo Decreto s/n - 20/04/2004. A presença dos Sateré-Maué na região da TI Coatá-Laranjal é recente. Remonta ao ano de 1980 quando um grupo migrou para o rio Mari-Mari. Com autorização dos Munduruku fundaram uma aldeia chamada Vila Batista II.



Localização da TI Coatá-Laranjal

Os Sateré-Maué também são encontrados morando nas cidades de Barreirinha, Parintins, Maués, Nova Olinda do Norte e Manaus, todas situadas no estado do Amazonas. No Pará há um grupo na cidade de Juruti.

DADOS ESTATÍSTICOS [10]

Municípios

Municípios com incidência nesta Terra Indígena

Municípios - Terra Indígena Andirá-Marau


#
UF
Município
Área do Município (ha)
% do município coberto pela TI
1
PA
Aveiro
1.707.429,00
15,73%
2
AM
Barreirinha
575.053,00
28,33%
3
PA
Itaituba
6.204.095,00
3,30%
4
AM
Maués
3.998.839,00
3,34%
5
AM
Parintins
595.233,00
4,41%

Povo e demografia

Segundo dados recentes, 13.350 pessoas vivem nesta TI.  A população Sateré-Maué tem crescido progressivamente nos últimos 25 anos, como pode se ver abaixo.


Ano
População na Terra Indígena
Fonte
2016

CGTSM
2014
13.350
CGTSM
2010
11.321
IBGE
2002
73.76
Funasa/Parintins
2000
7.134
Funai/Parintins
1991
5.825
Funai





Ritual da tucandeira

Os Sateré-Maué conservam a tradição do ritual da tucandeira. A tucandeira é uma formiga cuja estocada do ferrão provoca dores durante quase 24 horas. Os meninos devem fazer 20 sessões. “Ao enfiar as mãos em uma luva cheia de formigas durante aproximadamente 20 minutos, o menino não apenas demonstra estar apto para vida, mas também ganha respeito e admiração, além da certeza de que está protegido contra várias doenças.”[11] A “luva” de palha se chama “saaripé”.
Como participei deste ritual na aldeia Fortaleza, farei lá a descrição de todo o rito com fotos.

Os Carmelitas e os Sateré-Maué

Os carmelitas foram missionários no Amazonas, principalmente nos rios Negro e Solimões, a partir de 1695. Mas também trabalharam na região de Parintins evangelizado e dando assistência espiritual tanto aos Sateré-Maué como aos Munduruku. O maior missionário carmelita na região de Parintins foi o paraense Frei José Alves das Chagas.
Frei André Prat, em sua fabulosa obra Notas Históricas sobre as Missões Carmelitas no Extremo Norte do Brasil, apresenta dados biográfico de muitos missionários carmelitas da Amazônia. Sobre Frei José Alves das Chagas escreve:
Foi o primeiro missionário e fundador da VILLA DA RAINHA ou VILLA NOVA [hoje: Parintins], ou como outros a denominaram VILLA BELLA DA RAINHA e primitivamente chamado logar MUNDURUCÚS. Em 1853 passou ainda a dar-se-lhe o nome de VILLA BELLA DA IMPERATRIZ. Acha-se situada na ilha de Maracá, onde, precisamente, por muito tempo, Fr. José Alves, com grande zelo da salvação das almas, desdobrou a catequese e prestou relevantíssimos serviços, sendo por isso muito estimado da Tribo dos índios MAUÉS.
Apóstolo da caridade, era um verdadeiro pai dos índios, cuja língua tupy falava perfeitamente.
A Aldeia de S. José de MATARY ou AMATARY, foi também fundada e evangelizada por este missionário Carmelita.
Fundou também a missão de SAPUCAIOROCA, no baixo Madeira.
Sua ação evangelizadora se estendeu à Aldeia de BORBA.
Seu nome é ainda hoje lembrado com veneração em todas as regiões da MUNDURUCANIA.
O cônego Francisco Bernardino de Souza, na “Commissão do Madeira”, 2.ª parte, pag. 28 e 83, tratando da VILLA NOVA DA RAINHA estabelecida na Ilha Maracá, escreve:
“Seu primeiro missionário foi o Carmelita Fr. José das Chagas, que lhe prestou immensos e importantíssimos serviços. Um delles foi a viagem que fez ao rio “Guarajatuba” (um dos braços do rio Punis), de onde conduzia varias famílias da tribu “Maués”.
Estabelecidas estas na nascente povoação, applicaram-se ao trabalho de roças e cafezaes, nas margens pittorescas do Rio “Paraná-nema” e do lago “Macurany”, próximos ao povoado.
Por alguns annos estiveram ali aquelles índios, mas desgostosos com a retirada do missionário, abandonaram muitos as casas que tinham na povoação e espalharam-se pelos rios “MAMURÚ”, “UAICURAPÁ” e “ANDIRÁ”. Foram também a isso obrigados, por haverem sido, quasi ao mesmo tempo, remettidos para a missão, por ordem do governador, como exilados, alguns indios de uma tribu do rio Negro, os quaes viviam em constantes depredações, causando graves prejuisos á colonia portugueza daquelle rio. Não querendo os Maués unirem-se a elles, preferiram retirar-se.
A mudança de Fr. José das Chagas foi devida á desintelligencia com o capitão José Pedro Cordovil. Retirando-se da missão de “Villa Nova da Rainha”, foi fundar uma outra, com indios “Mundurucús”, que é a actual freguezia de “Canuman”.
Fr. José das Chagas era o verdadeiro typo de missionario, o amigo dedicado dos indios, que também lhe votaram essa affeição sincera e profunda dos filhos das selvas. Tratava os seus cathecumenos com a maior doçura; verdadeiro apostolo da caridade, repartia com elles do que possuía, consolava-os em suas contrariedades, tratava-os com desvelo em suas enfermidades, fornecendo-lhes não só os medicamentos necessários, como ainda a dieta.
E era não somente aos índios que estendia a sua generosidade. Possuindo alguma fortuna, della dispunha em benefício publico e principalmente na sustentação e brilhantismo do culto. Em testemunho desta asserção, ainda estão em Villa Bella os ricos paramentos, que servem nas grandes solemnidades, o frontal, o missal e outros objectos, que por elle foram comprados e doados á matriz.
Também foi por elle doado ao seu convento, em Belém, no tempo em que ali servio de Prior, o órgão que ainda hoje lá funcciona.
Depois de uma vida affanosa, toda dedicada ao serviço do próximo e á cathechese dos índios, já adiantado em annos e em estado de caducidade, falleceu na Villa de Borba, deixando nessa parte do Amazonas um nome que por longos annos ali será repetido com a mais profunda veneração e respeito.
Fallava Fr. José das Chagas com muita graça e propriedade a língua geral ou tupy e no púlpito somente della fazia uso quando se dirigia aos índios.
Foi o verdadeiro Las-Casas e Anchieta da MUNDUCURANIA. “Villa Bella da Imperatriz” talvez só a elle deva a sua existência e a sua tal ou qual prosperidade: “Canuman” mereceu-lhe particular solicitude; a aldêa de “S. José de Matary” foi, por assim dizer, creada por elle; “Borba” sentiu os effeitos da sua mão beneficente; em uma palavra, toda a região da Mundurucania conserva ainda bem viva a lembrança do seu nome, das suas virtudes e dos seus benefícios.
Elevada a missão de “Villa Nova da Rainha” á Freguezia, por deliberação do conselho geral da província do Amazonas, foi denominada “TUPINAMBARANA”; e elevada á villa, por lei provincial de 15 de Outubro de 1853, passou a denominar-se “VILLA BELLA DA IMPERATRIZ”.[12]

Em minhas pesquisas no Arquivo Secreto Vaticano encontrei dois documentos referentes a Frei José das Chagas. Estão na documentação da Nunciatura de Lisboa.
O primeiro documento é uma petição provavelmente dirigida ao Núncio. Foi pedido para Frei José “os privilégios de Vigário Paroquial, honras e isenções anexas”. Neste documento há a afirmação: “ultimamente se acha occupado na Reducção de varios Gentios, de que já tem formado tres Missões [13]. Infelizmente não menciona onde ficavam essas 3 missões.
O segundo é um atestado escrito pelo bispo eleito Dom Romualdo de Souza Coelho[14]. Certamente foi escrito para acompanhar o documento anterior. Dom Romualdo informa algo sobre a atuação missionária do carmelita Frei José das Chagas com os Munduruku e Maugués (Maué). Frei José era tão bom missionário, que o bispo estava querendo encarregá-lo da catequese dos Mura mesmo estando em idade avançada. Diz o atestado:
Romualdo de Souza Coelho, Professo na Ordem de Christo, Cavalleiro da de Nossa Senhora da Conceição, Bispo Eleito do Pará etc.
Attesto aos Senhores, a quem o conhecimento desta pertencer, que Fr. José das Chagas Religioso Carmelita calçado rezidente na Provincia do Pará, paroquiou ali muitos annos na parte superior do Rio Solimões, Capitania do Rio Negro, com muito zelo, e satisfação dos respectivos Habitantes; e que recolhendo-se para o seu Convento com o destino de ser empregado no Governo do mesmo, foi immediatamente encarregado pelo meu antecessor[15], e pelo General, que então era o Illustrissimo e Excelentissimo Senhor Conde dos Arcos, no laborioso Ministerio de reduzir ao Gremio da Religião os Gentios Mondurucú, e Maugués; o que elle desempenhou com tanta vantagem, que já tem estabelecido tres Missões, e pertendo agora, que vá catequizar o Gentio Mura nas margens do Amazonas, apezar da avançada idade, em que se acha. Rio de Janeiro 8 de Maio de 1820
Romualdo Bispo Eleito do Pará[16]
Segundo Frei André Prat, o sucessor de Frei José das Chagas em Borba foi Frei José (ou Vicente) de Carvalho Pena[17].

O trabalho dos padres do PIME[18] com os Sateré-Maué

Os padres do PIME trabalham com os índios Sateré Mawé desde 1948, quando se fixaram em Parintins, AM. Até o momento, todos os bispos da Diocese de Parintins[19] sempre apoiaram a causa indígenas e não mediram esforços para que a evangelização tivesse continuidade encarregando padres para o trabalho pastoral e fazendo visitas e crismas.
Os padres se esforçaram para fazer visitas constantes aos índios, anunciando o Evangelho, batizando, catequisando, celebrando missas, assistindo casamentos, ungindo doentes, dando bênçãos, construindo igreja, formando comunidades de fé, dando formação humana e cristã, etc.
O Papa Paulo VI, em seu marcante documento Evangelii Nuntiandi, chamava a atenção de que existe uma profunda ligação entre Evangelização e Promoção Humana.[20] Por isso os padres do PIME, sempre fiéis ao Magistério da Igreja, procuraram, sem se descuidar dos aspectos espiritual e sacramental, realizar ações para melhorar as condições educacionais, de saúde e sociais dos indígenas. Nas aldeias organizaram um pequeno dispensário com agentes voluntários de saúde e três casas de corte costura.
Construíram várias escolas nas aldeias e em 1988 fundaram a Escola Indígena São Pedro – no município de Barreirinha, que é um centro-sócio religioso, incluindo um Centro de Saúde materno-infantil. Atualmente está com 200 alunos, sendo 80 internos – provenientes principalmente das comunidades do alto Andirá. Ajudaram também muito na formação de professores indígenas. Uma das consequências desta ajuda é que todos os professores nas aldeias são Sateré-Maué. Os próprios professores reconhecem que sem essa ajuda não seriam professores hoje.
Além de manterem o Centro de Saúde materno-infantil na Escola São Pedro, ajudaram na formação de agentes de saúde.
Apoiaram e ajudaram na demarcação da TI Andirá-Marau.
Entre os padres do PIME, dedicados aos índios, destaca-se o Pe. Henrique Uggé. Desde 1972 trabalha ininterruptamente com os Sateré. Nestes mais de 45 anos, visitou com regularidade às aldeias. Incentivou e apoiou a construção de igreja e escolas.
Desde o início de seus trabalhos incentivou os cultos dominicais nas aldeias. Também introduziu novenas aos sábados. Com sua atividade pastoral procurou transformar as festas dos padroeiros, que tinham muito de festas profanas com dança e cachaça, em verdadeiras festas religiosas com Primeiras Comunhões, Crismas e Casamentos. Nos momentos importantes do Ano Litúrgico, como Natal e Semana Santa, fez o possível para celebrar nas comunidades indígenas.
Empenhou-se em dar formação catequética e litúrgica do ano em curso no Advento, Natal, Quaresma, Pascoa e outros eventos (Ano Santo da Misericórdia, etc.). Também se esforçou para produzir publicações com orações e cantos em Sateré, tradução do Santo Rosário...
No momento está criando condições para que nas aldeias tenha também sacrário para dar a possibilidade aos indígenas de receberem o Corpo de Cristo. Para isso tem realizado cursos de formação sobre a Eucaristia e de preparação para Ministros Extraordinários da Comunhão Eucarística. Também tem incentivado a construção de novas capelas para que tenham a segurança necessária para o sacrário.
Ao longo do relato vou narrar mais sobre atividades do Pe. Henrique Uggé.




VISITANDO OS SATERÉ-MAUÉ


Domingo - dia 11 de março de 2018

Em outubro de 2017 foi realizado um encontro dos indígenas da bacia do Tapajós no Centro de Treinamento da Prelazia de Itaituba. Estiveram presentes 10 Sateré-Maué do alto rio Andirá. No final do encontro, eles me convidaram para visitá-los. Por isso programei esta visita.
Para chegar até a região dos Sateré-Maué, há duas possibilidades: ir de avião ou ir por água. A viagem de avião monomotor dura em torno de meia hora e a distância em linha reta é de pouco mais de 130 km. Por água é bem mais complicado e demora dois dias. Deve-se tomar a lancha de Itaituba até Santarém, que são 7 horas. Dormir em Santarém e no dia seguinte tomar o barco até Parintins no Amazonas. Depois de Parintins tomar um barco até a aldeia Torrado. Depois para se chegar às aldeias só é possível ir de voadeira ou rabeta.
Descartei a ida por água devido ao tempo que demoraria. Eu só tinha uma semana disponível e passar 4 dias viajando, só restariam 3 dias para visitas. Conversando com o Sr. Valmir Clímaco sobre o convite que me fizeram e sobre a dificuldade da viagem com barcos e da demora que estes levariam até lá, diminuindo, portanto, os meus dias junto aos indígenas, ele prontamente me colocou à disposição sua aeronave, um monomotor para cinco passageiros e mais o piloto. Muito grato aceitei a oferta e comecei meus preparos para a viagem.
Inicialmente íamos eu e o representante Sateré em Itaituba, Sr. Leonardo Martins Cardoso, porém, lembrei de um amigo leigo, que mora em Curitiba, mas sempre que pode vem até a Itaituba e me acompanha em algumas incursões de evangelização. É os Sr. Jonas Pinheiro. Ele ficou muito feliz quando lhe fiz o convite para participar comigo nessa viagem. Ele já me acompanhou numa missão que fizemos nas aldeias indígenas dos Munduruku na região de Jacareacanga e do Rio Cururu no alto Tapajós.
Estava programado viajarmos dia 12 de março – segunda-feira, mas na sexta-feira – dia 9, fui contatado para ver se não era possível antecipar a viagem para o domingo dia 11. Isto até iria nos ajudar, porque teríamos um dia a mais para as visitas. Topei na hora.
Assim sendo, nos preparamos e fomos ao aeroporto de Itaituba logo após o almoço. Lá o piloto Rildglan Monteiro estava nos esperando. O monomotor PR – LHP tem capacidade para 5 passageiros e mais um pequeno espaço na cauda para bagagem. O piloto estava acompanhado de um aprendiz que voou conosco. As nossas coisas (mochilas, comida, imagens de santos, etc.) lotaram todo o bagageiro e mais o banco livre que seria o 5º passageiro. O aviãozinho ficou completamente lotado e pesado.


Às 14h02 estávamos na cabeceira da pista e levantamos voo às 14h03.
Chegamos às 14h38 no campo de pouso da aldeia Vila Nova. Havia muita gente nos esperando, principalmente crianças e adolescentes. A nossa chegada foi uma verdadeira festa de uma alegria contagiante. Todos chegavam para nos cumprimentar.

Vista aérea da Vila Nova


Chegada no campo de pouso

Apesar de estarem no Estado do Pará, nestas aldeias se segue o horário do Amazonas, que é uma hora a menos do que no Pará. Aqui no relato vamos colocar sempre o horário oficial do Pará.
A aldeia Vila Nova é a maior e a mais antiga aldeia Sateré-Maué às margens do rio no alto Andirá. Está dentro da TI Andirá Marau. Já foi uma aldeia essencialmente católica, mas hoje a maioria dos moradores são da igreja Batista. Nem há mais uma igreja ou capela católica na aldeia. A Vila Nova se tornou aldeia em 1955. Antes havia moradores no local, mas ainda não se constituía como uma aldeia.
Há uma escola de ensino fundamental da primeira à oitava série. Também há um posto de saúde com uma enfermeira e uma técnica de enfermagem.
Os Sateré-Maué da região produzem guaraná, farinha, cará, mandioca, banana, açaí, buriti, patauá, pupunha, laranja, cupuaçu e os óleos de andiroba e copaíba.
O que mais produzem é a farinha, extraída da mandioca, que é o alimento básico. É consumida com qualquer outra mistura ou somente com água e açaí.
 A maioria dos alimentos são extraídos da natureza como o açaí, pupunha, cupuaçu, goiaba, buriti, castanha, pequi, e muitas outras frutas, inclusive o guaraná. O guaraná é cultivado e é parte integrante da cultura Sateré-Maué, como foi visto na primeira parte deste relato. Recordo que os Sateré-Maué se consideram como “filhos do Guaraná”. É o principal produto do qual eles sobrevivem economicamente, sobretudo na região de Maués e proximidades. Há uma própria associação para comercializar o guaraná. A aldeia Santa Cruz é a que mais produz guaraná na região do alto Andirá.
O rio Andirá não tem muito peixe. A caça também é bastante escassa nas regiões próximas às aldeias. No entanto, quando eles chegaram na bacia do rio Andirá, o rio era rico em peixes e na região havia muita caça. Porém, devido ao uso contínuo do “timbó”[21] os peixes desapareceram. Há que se frisar que a população também aumentou muito com o consequente aumento da caça e da pesca. Os animais ou foram caçados ou fugiram para longe das aldeias. Por isso hoje o rio tem pouquíssimos peixes e a caça é rara. Anda-se horas e horas de barco pelo rio e não vê uma ave como também não se houve cantos de pássaros. Pacas, cotias, tatus, antas, caititu, queixada, bicho preguiça, gatos selvagens, araras, gaviões ... e até cobras, foram todos para a panela. Diferente dos Munduruku, os Sateré-Maué comem jacaré.

Aldeia Vila Nova tem 540 habitantes. Há em torno de 200 crianças. É nesta aldeia onde mora o cacique geral. Ele se chama Cândido Dias de Oliveira. Está com 53 anos e tem cinco filhos. Ele se tornou cacique geral dois anos atrás. Antes ele era o tuxaua da aldeia Vila Nova. Atende as aldeias da região desde a aldeia Limoal, a primeira no estado do Pará, até a aldeia Conceição, a última do rio Andirá, incluindo as que estão nos igarapés e afluentes. Hoje, são 27 as aldeias Sateré-Maué no Estado do Pará. Este número pode aumentar ou diminuir por causa de subdivisões ou unificações. Exemplos são as aldeias Terra Prometida e Monte Oliveira. A primeira completará um ano dia 27 de abril próximo e a segunda foi fundada em janeiro deste ano.
Os Sateré-Maué chamam o tuxaua ou cacique[22] de “tu i çá”. Quando usam a palavra portuguesa, chamam de tuxaua e raramente de cacique. Neste relato em geral vai ser usada a palavra indígena “tu i çá”.
O atual “tu i çá” da aldeia Vila Nova se chama Jacó Miquiles. Ele está com 44 anos. Tem cinco filhos e assumiu a função de “tu i çá” um ano atrás. Ele foi nosso piloto da rabeta na segunda etapa da viagem nos levando e trazendo da Vila Nova até Limoal.
Além do “tu i çá”, a aldeia possui um capitão que tem a função de apaziguar e resolver desavenças e brigas. O capitão da Vila Nova se chama Heliton de Souza. Ele e sua esposa Ada foram nossos guias de ida e volta a pé até a aldeia de Santa Cruz distante 6,5 km de Vila Nova. Foi uma experiência muito boa caminhar pelas matas da Amazônia, vendo toda a sua exuberância e diversidade de vegetações e tamanhos de árvores. Ele está com 63 anos e é pai de sete filhos. Faz uns 30 anos que ele é o capitão da aldeia. Ele e uma de suas filhas fazem artesanatos, tais como: abanadores, correntes, pulseiras, anéis, abajures, cuias e outros mais. Em agosto próximo, a convite de uma associação, irão expor seus produtos numa feira artesanal em Aveiro.







O cacique geral Cândido Dias de Oliveira
O “tu i çá” Jacó Miquiles
O capitão Heliton de Souza

SUBINDO O RIO ANDIRÁ ATÉ A ALDEIA FORTALEZA

Saímos às 16h20 numa voadeira com motor de 15 HP. Na voadeira estávamos em 5 pessoas: o Leonardo, o Jonas, o piloto Dedicarmos, o jovem Daniel, filho do “tu i çá” Jacó, e eu. Tivemos vários imprevistos durante a viagem, além da chuva, havia muitos paus e árvores caídas no rio. O motor estava com problema – constantemente apagava. Perto da aldeia Fortaleza a hélice bateu num pau e quebrou uma palheta. Felizmente, mesmo sem trocar a hélice deu pra chegar – evidentemente que a viagem ficou mais lenta. Chegamos na aldeia Fortaleza às 17h55.

Rio Andirá

Na aldeia Fortaleza

A aldeia Fortaleza não é muito grande. Tem 37 famílias e uns trezentos habitantes.
Oficialmente a aldeia Fortaleza foi fundada em 1975. Mas antes disso já havia gente morando no local. Levou o nome de Fortaleza por causa de um regatão[23] cearense, que era de Fortaleza. O primeiro cacique foi Geraldo Carvalho de Souza. O local antes de ser aldeia era onde as pessoas, que subiam o rio para ir às aldeias dali pra cima, deixavam suas embarcações e depois seguiam a pé. Naquela época o local era conhecido como Araticum.
Também em 1975 começou a funcionar a primeira escola. Já no início levou o nome de Escola Bom Socorro. O nome foi dado pelo padre Henrique Uggé, porque a paróquia de Barreirinha tem como padroeira Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Todos os professores das aldeias são Sateré-Maué. Isso se deve a um projeto do padre Henrique Uggé que no passado conseguiu capacitar os professores. A Escola Bom Socorro da aldeia Fortaleza tem oito professores e os oito são Sateré-Maué.
O padre Henrique Uggé costuma vir ali uma vez no ano. Ele é italiano. Atualmente ele visita só as comunidades onde a maioria é católica. Ele dedicou quase toda sua vida de corpo e alma em defesa dos indígenas. As primeiras escolas foram feitas por ele. Também teve uma atuação intensa na área de saúde. Criou curso de capacitação de professores e uma escola agrícola. Está com mais de 80 anos, portanto não tem mais o mesmo dinamismo e disposição de antes. Publicou um livro sobre a história e lendas do Sateré-Maué.
Ao andar pela aldeia, vi várias vezes no chão riscado um retângulo subdivido em retângulos menores. Imediatamente me veio na memória os tempos de criança em que principalmente as meninas brincavam de amarelinha. Não recordo quando vi pela última vez alguém brincando de amarelinha. Fiquei pensando: será que as crianças desta aldeia brincam de amarelinha? Não dei muita bola nem perguntei. Mais tarde vi as crianças justamente brincando de amarelinha. Uma das meninas pulava com uma perna só e chutava uma pedrinha até o retângulo seguinte. Quando chegou em baixo chutou a pedra para o outro lado e começou a chutar pra cima. De repente perdeu o equilíbrio e encostou o outro pé no chão. Consequentemente perdeu. Outra menina começou a fazer a mesma coisa.
Crianças brincando de amarelinha

Mais tarde vi que estavam brincando também de queimada com uma bola de borracha. Este tipo de brincadeira só vi ali na aldeia Fortaleza.
Foi-nos oferecido um gostoso açaí e café. Enquanto estávamos merendando, conversamos bastante sobre a situação dos indígenas na atualidade. O Leonardo explicou sobre o projeto “Ponte de Safena”, que visa construir uma estrada particular que passará por dentro da área indígena. Por essa estrada serão transportados produtos fabricados em Manaus até o rio Tapajós. Dali para o Sul através das rodovias Transamazônica e BR 163. E outros projetos que também tem influência sobre a vida dos indígenas.
Durante o café, deu pra sentir os efeitos dos ataques dos mosquitinhos maruim, ou seja, do famoso porvinha. É difícil de vê-los, visto que são muito pequenos. Quando se sente a coceira não adianta tentar matá-los, porque já escaparam. Não consegui ver nenhum voando ou pousado na perna chupando sangue. A coceira se prolonga por um bom tempo.
Após o café, fomos tomar banho no rio. A água estava bastante fresca. O Jonas, muito “inexperiente”, resolveu se ensaboar dentro da água. Não deu outra: o sabonete escapou de sua mão e sumiu no rio. Três dias depois, ao passar pela aldeia Vila Nova, que fica abaixo da aldeia Fortaleza, andou perguntando se alguém havia encontrado o seu sabonete!


São Francisco Xavier

Pelo fato da aldeia Fortaleza ser totalmente católica, celebrei uma missa ao anoitecer. A missa foi na “escola”. Há uma capela situada um pouco fora da aldeia. Está um pouco abandonada. Todas as celebrações em geral são feitas na escola. Esta comunidade adotou como padroeiro São Francisco Xavier.[24] Pediram-me para arrumar uma imagem deste santo jesuíta, que juntamente com Santa Teresinha do Menino Jesus, foi proclamado padroeiro universal das missões pelo Papa Pio XI em 14 de dezembro de 1927. Custou-me muito encontrar a imagem. Consegui numa loja em Aparecida (SP) via internet. Antes de começar a missa, benzi a imagem e a entreguei para a comunidade. Eu pensava que eles já tivessem uma devoção a São Francisco Xavier, mas percebi que era só um desejo de o ter como padroeiro. Tanto é que nem sabiam o dia em que é celebrado. Perguntaram-me e eu não sabia de cor. Prometi comunicar. Ao chegar em casa descobri que seu dia festivo é 3 de dezembro.
Dormimos dentro de uma espécie de depósito, que faz parte da escola. É todo fechado e tem uma pequena janela. Como numa das paredes não havia onde atar as redes, foi pregada uma travessa de madeira. O Leonardo, o piloto e eu atamos uma das pontas da rede nessa travessa pregada nas vigas da parede. Portanto, 3 redes estavam amarradas naquela ripa. Passava um pouco da 1 da madrugada e eu me levantei para urinar. Quando eu voltei e deitei na rede, a travessa se despegou e nós 3 caímos no chão. Felizmente não nos machucamos e deu para contornar a situação amarrando em outro lugar. A rede do Jonas estava atada em outra travessa, portando, não caiu. Ele caiu na gargalhada e não parava mais. Será que isso era motivo dele se mijar de tanto rir na madrugada com a desgraça alheia! Oh amigo da onça!


Segunda-feira - dia 12 de março

A nossa voadeira não tinha condições de subir o rio com uma das palhetas da hélice quebrada. Não havia uma disponível pra substituí-la. Por isso o professor Henrique ofereceu a sua rabeta para continuarmos a viagem, mas gasolina que ele tinha era insuficiente para nossa viagem. A rabeta usa gasolina pura e o motor da voadeira usa gasolina temperada com óleo. A gasolina que estávamos trazendo estava toda misturada com óleo. Assim não podia ser usada no motor da rabeta. O jeito foi o nosso piloto Dicarmo descer até a Vila Nova com a rabeta buscar gasolina sem ser temperada para que nós pudéssemos continuar a nossa viagem. Entre sua ida até a Vila Nova e volta, passaram-se umas 3 horas.
Aproveitamos o tempo para conversar com os indígenas e tomar guaraná.


Viagem até a aldeia Bom Jardim

Só foi possível sair às 12h37. Continuamos subindo o rio Andirá rumo à aldeia Bom Jardim.
O bote é de madeira e menor do que a voadeira e muito mais lento. A vantagem é que a rabeta é muito mais econômica e não tem tanto problema com os paus, porque a hélice fica mais à flor da água, assim pode-se passar qualquer lugar.
A viagem na maior parte do tempo foi na sombra, porque as árvores cobrem de um lado ao outro o rio.

O rio é mais estreito e tem bastante sombra

Aldeia São Raimundo

A primeira aldeia acima da Aldeia Fortaleza é a São Raimundo. Chegamos ali às 12h57. Havia várias crianças tomando banho no rio e algumas estavam totalmente nuas. Uma menininha resolveu pular na água bem na frente da rabeta para atravessar para o outro lado do rio. Por muito pouco a hélice da rabeta a feriu. Rabeta não tem breque!
É uma aldeia evangélica batista. Paramos para uma rápida visita.
Aldeia tem 10 famílias e em torno de 50-60 pessoas. A aldeia é pequena, mas conta com o número de oito professores. Há ensino infantil e o fundamental da primeira a oitava série. Todos os professores são Sateré-Maué.
O “tu i çá” chama se chama Joel. Há um agente de saúde. Porém, não há um posto de saúde e o agente atende na sua própria casa.
Saímos da aldeia São Raimundo as 13h17. Foi uma visita bastante breve o “tu i çá” Joel não estava, mas saudamos a sua esposa e dois professores.



Crianças tomando banho no rio Andirá

Aldeia São Raimundo

Casa do “tu i çá” Joel


Aldeia Novo Airão

Às 13h40 chegamos na aldeia novo Airão. Paramos para uma pequena visita. É também uma aldeia evangélica.
Ali vivem 8 famílias e total de 36 moradores. O “tu i çá” chama-se Jecy de Oliveira. Há ensino infantil e fundamental. Há seis professores que dão aulas de manhã, de tarde e à noite. Chegam ali também alunos de aldeias vizinhas. Estão construindo uma nova escola.
Tem uma boa casa de farinha. Duas mulheres estavam fazendo farinha.
Vista parcial da aldeia Novo Airão

A nova escola em construção

A casa da farinha

Fazendo farinha


Almoçamos na beira do rio. Comemos um pedaço de paca que tínhamos ganhado lá na aldeia Fortaleza. Também comemos carne assada na panela com cebola que a Marilza Faria, secretária da Prelazia de Itaituba, tinha preparado, bem como linguiça calabresa frita colocada na farofa de mandioca.
Depois de termos nos abastecido, seguimos a viagem. Saímos às 14h40.


Aldeia Kuruatuba

Chegamos na aldeia Kuruatuba às 15h14. Fizemos uma rápida visita. É uma aldeia importante por ser uma aldeia polo em termos de saúde.


Vista parcial da aldeia Kuruatuba


Com a camiseta de Nossa Senhora do Carmo e catedral de Parintins


O “tu i çá” desta aldeia é uma mulher chamada Cristina de Oliveira. Ela não estava quando nós passamos. Tinha ido para Barreirinha. Na aldeia há uma escola com três professores. Há aulas do ensino fundamental da primeira à quinta série.
O padroeiro da aldeia é São Paulo. Faz muito tempo que não aparece um padre aqui nesta aldeia, segundo informação de um rapaz. Encontrei uma menina com a camisa de Nossa Senhora do Carmo de Parintins. Vivem nesta aldeia 22 famílias. A população é de 120-30 pessoas. Segundo um rapaz, a maioria da aldeia é católica.
Saímos da aldeia às 15h38.

Aldeia Bom Jardim

Chegamos na aldeia Bom Jardim às 15h58. Estava chovendo. Sua localização pelo GPS: 3°47_7_ S  56°48_51_ O.
O “tu i çá” Samuel Batista esteve no encontro promovido realizado em Itaituba pela Repam em outubro passado. Ele e todos moradores da aldeia são membros da igreja Batista. Mas ele fez questão de me convidar para que visitasse a aldeia Bom Jardim.
Quando chegamos havia um estudo bíblico no salão comunitário. Aliás, a aldeia estava em festa religiosa. A festa deles é essencialmente participar de encontros bíblicos durante o dia e do culto à noite. Cada festa é comemorada dois dias e a aldeia deve dar de comer para os visitantes das aldeias vizinhas. Ao perguntar ao “tu i çá” o que eles comemoravam na festa (batista), ele me respondeu: “Comemoramos o aniversário do dia em que o “tu i çá” desta aldeia se entregou a Jesus!” Depois constatei que todas as aldeias batistas fazem a mesma coisa, de modo que em cada mês (mais ou menos) há uma festa para os batistas comemorarem.
Depois de um café, o “tu i çá” nos levou para conhecer alguns pontos da aldeia. Primeiro nos levou até a escola, se é que se pode chamar escola, visto que está em situação muito precária, inclusive com vários buracos no teto feito de palha.
Depois nos levou onde funciona o “posto de saúde”. É uma casa feita pelos próprios indígenas. Isto o “tu i çá” falou de boca cheia e muito orgulho. Mostrou-nos o pequeno armário onde estão os remédios. Foi triste ver: há poucos remédios e a maior parte é xarope. Não tem um comprimido ou qualquer remédio para aliviar a dor. Ali há também um rádio para se comunicar com outras aldeias e Funai, mas a bateria arriou e por isso não funciona. No alto rio Andirá, a Bom Jardim única aldeia que tem rádio. Creio que deva ter também na aldeia Kuruatuba por ser uma aldeia polo de saúde.
Também nos levou para conhecer a capela batista, onde houve culto à noite com muitos cantos e pregação. Tudo foi rezado e cantado na língua Sateré. Pelas melodias deu para identificar que uma boa parte dos cânticos eram traduções de cantos evangélicos ou católicos. Um dos cânticos foi o “Glória, glória, aleluia” do Exército da Salvação.
Tomamos um gostoso e restaurador banho no rio. A água estava bem fresca. Desta vez o Jonas se ensaboou fora do rio para não correr o risco de perder mais um sabonete. Aproveitamos pra tirar uma casquinha perguntando pra ele: “Será que o pessoal da Vila Nova conseguiu pegar o teu sabonete?”
Dormimos num barraco onde havia uma família da aldeia Livramento que tinha vindo para a festa. Desta vez não caímos, visto que as cordas das redes não arrebentaram nem os paus, onde as atamos, quebrou. Foi um sono muito reparador.

Terça-feira - Dia 13 de Março 

Participamos do café comunitário no salão de encontros e reuniões. Tinha beiju, pipoca, pão, e outras coisas. O pão, feito ali mesmo na aldeia, era muito gostoso. Também tinha bolo de forma.

Ida até a aldeia Conceição

Saímos para visitar na aldeia Conceição às 8h28. Já dava para perceber que o rio estava mais estreito e raso do que pra baixo. Também era perceptível que há bem mais paus caídos do que no trecho entre a Vila Nova e a aldeia Bom Jardim.



         Aldeia do Livramento

Às 8h42 chegamos à aldeia do Livramento. Sua localização no GPS: 3°47’57’’S 56°48’49”O. Fizemos uma parada.
A aldeia tem oito famílias. 48 pessoas, sendo 15 crianças, moram nesta aldeia. Hoje todos seus moradores são membros da igreja Batista.
O “tu i çá” é o Ozene Batista. A aldeia foi fundada pelo avô dele, a saber, por Antônio Prudêncio.
Pra chegar na aldeia tivemos que subir uma longa e íngreme ladeira. Tive que fazer duas paradas para refazer as forças respirando profundamente. A aldeia tem um campo de futebol, mas parece que está sendo pouco ou nada usado, visto que a capoeira está um pouco alta. O motivo é que não conseguiram dinheiro para colocar combustível na roçadeira para roçar e limpar o campo.
Esta aldeia tem um gerador próprio de eletricidade. Inclusive dentro da aldeia há postes de luz.
Estão construindo uma nova capela.


Vista parcial da aldeia do Livramento


A nova capela

Batemos um longo papo no salão comunitário sobre a situação dos indígenas em geral e sobre os Sateré-Maué. Mostraram-nos a Bíblia traduzida. A primeira coisa que olhei foi a grafia. Parece que segue a pronúncia latina e não anglófona.




Durante a conversa nos ofereceram tacacá e paca assada. 
Lavei a mão numa torneira de água encanada. A água é levada do rio até uma caixa da água. É transportada em baldes de 18 l. A pia é de madeira, uma espécie de gamela grande. A madeira é itaúba.



Visitamos a Escola Pe. Henrique Uggé.  É um barraco coberto de palha e sem paredes laterais. Felizmente a lousa é muito boa. Usa-se pincel atômico e não giz. Tem um sino para chamar as crianças. O professor é o Anilson Dias de Oliveira, que dá aula para 10 crianças. Ele nos explicou como ele dá aula. Fez-nos uma demonstração prática, inclusive mostrando como se faz divisão. No início da aula normalmente depois de dizer bom dia se pergunta para as crianças como estão as coisas em casa. Cada criança deve responder individualmente. Ele perguntou para alguém que estava nos acompanhando como estão as coisas em casa. Respondeu que estava tudo bem e que ele tinha dormido bem e sonhado com as “gatas”.
Ao lado da escola tem um campinho de futebol todo de areia. É usado para a educação física dos alunos.


A Escola Pe. Henrique Uggé

Continuando a viagem
Saímos da aldeia Livramento às 10h43. Seguimos rio acima em direção a aldeia Conceição. Havia muitos paus caídos na água. O rio se estreitava cada vez mais.
O dia estava ensolarado. Estava muito agradável andar pelo rio. O clima estava fresco. Havia bastante sombra e de vez em quando os lampejos de sol.
Às 10h57 nós cruzamos com uma voadeira. O piloto fez sinal para pararmos e nos disse que na árvore logo acima havia um bicho-preguiça. Disse que iria pegá-lo. A árvore era alta e o animal estava bem na ponta onde os galhos eram finos. Pensei: não vai conseguir. Mas ele subiu na árvore com uma vara e na ponta havia um laço feito de cipó. Laçou o bicho pelo pé, puxou-o e depois o jogou na água. A preguiça[25] foi colocada no nosso bote pra ser levada até a aldeia Conceição.


Rio Andirá

A preguiça


Prosseguimos a viagem às 11h13.
Às 11h48 passamos pela aldeia Novo Horizonte. É uma aldeia muito pequena. A nossa visita ali seria depois, visto que é fácil ir a pé por ser estar próxima da aldeia Conceição.
Às 11h53 atracamos no porto do cacique da aldeia Conceição. O “tu i çá” se chama Daniel Oliveira de Souza, mais conhecido como Darico ou Daniel Sateré. Ele está com 79 anos.
A localização da aldeia Conceição no GPS: 3°50_23_ S  56°48_13_ O .


O “tu i çá” Darico e sua esposa

Com o “tu i çá” Darico

Fomos até o salão comunitário e lá conversamos muito com os indígenas, principalmente com o “tu i çá” Darico e os professores. Perguntei sobre a história da aldeia.
Segundo o “tu i çá” Darico, a aldeia Conceição existe desde 1950. Foi fundada pelo senhor Manoel Inácio, que é o sogro do próprio Darico. Ele nos contou que lá pelos idos de 1910 havia uma aldeia bem acima da aldeia Conceição que se chamava Paraíso. Esta aldeia foi abandonada porque ficava muito longe das outras aldeias e o acesso era difícil. O fundador da aldeia Conceição saiu justamente desta aldeia Paraíso para vir fundar esta nova aldeia. Não há um posto de saúde. Quando acontece algo, deve-se ir até a aldeia Kuruatuba.
A escola está funcionando onde deveria ser a casa do “tu i çá”. Não tem paredes! Só tem a cobertura e o assoalho. As cadeiras são velhas e foram enviadas pelo prefeito de Aveiro, PA. Antes do envio das cadeiras, a escola não funcionava. Há dois professores contratados pela prefeitura de Barreirinha, AM. A prefeitura de Barreirinha tem pouca ou nenhuma preocupação alguma com as escolas indígenas que estão no Pará. Mas, segundo dizem, recebe verba do governo federal através do MEC para fazer funcionar todas as escolas indígenas da TI Andirá-Marau, inclusive as localizadas no Pará. Já estamos no mês de março e os professores até o momento não receberam pagamento neste ano, inclusive vários nem receberam o 13º e dezembro. Eles mesmo dizem que estão trabalhando de graça na esperança de receber lá na frente. A prefeitura não enviou material escolar, como por exemplo livros, lápis ou caneta, papel e caderno. Felizmente de vez em quando envia merenda escolar. A primeira Igreja Batista de Parintins, algumas vezes, faz doação de material escolar. As cadeiras, enviadas pela prefeitura de Aveiro, foram levadas de barco até a aldeia Vista Alegre. Depois tiveram que ser transportadas de voadeiras ou rabetas para as aldeias. Para buscar as carteiras escolares, cada aldeia teve que arcar com o combustível de ida até a Vista Alegre. Para a volta, foi dado o combustível correspondente de acordo com a distância da aldeia. A escola se chama Nossa Senhora da Conceição. Portanto, há uma ligação direta entre o nome da aldeia e o da escola.



A escola da aldeia Conceição

Enquanto estávamos conversando, os meninos foram enviados para buscar a preguiça, que estava no bote. Quando chegaram lá, a primeira coisa que fizeram foi matá-la a pauladas. Depois iriam comer.


O Delme com a preguiça

O menino com o bicho-preguiça

Fizemos um giro pela aldeia e visitamos algumas casas. Numa dela havia alguns meninos treinando atirar flechas num alvo no chão.

Passando pela Novo Horizonte

O Leonardo e eu saímos às 16h01 a pé para visitar a aldeia vizinha, que se chama Novo Horizonte. O Jonas e o piloto Dicarmo foram de rabeta até o porto desta aldeia. Ali ficaram nos esperando.
Passamos pela aldeia Novo Horizonte, mas estava quase deserta. Todos tinham ido para a festa da aldeia Bom jardim. Só vimos uma mulher. Após cumprimentá-la seguimos adiante. Descemos até o porto para tomar a rabeta, mas ali estava o Delme Oliveira de Souza, o filho do “tu i çá” da aldeia Conceição, nos esperando de voadeira para nos levar até a aldeia Bom Jardim. O Leonardo e eu pegamos carona com ele. O Jonas e o piloto Dicarmo seguiram na rabeta.
Saímos às 16h26 e chegamos às 16h52 no porto da aldeia Bom Jardim.


Vista parcial da aldeia Novo Horizonte

A escola
A distância entre Conceição e Bom Jardim é de aproximadamente 7,5 km pelo rio. A rabeta levou 40 minutos e a voadeira, 26 minutos.
Após tomar um café, fomos ver a plantação de guaraná ao lado da casa do cacique. Ele nos explicou como fazem o cultivo, como colhem e secam. Há uma associação que faz a gestão da venda do guaraná.



A árvore do guaraná


Tomamos um gostoso banho no rio, apesar da água fria.
À noite houve culto na igreja batista.

Quarta-feira - Dia 14 de março 

Após participarmos do café comunitário, iniciamos a descida pelo rio até aldeia Fortaleza saindo da aldeia Bom Jardim às 9h14. O clima estava muito agradável e o céu, nublado. Sem sol, à beira do rio estava um ambiente bastante fresco.
Passamos pela aldeia Santo Antônio às 9h17. Aldeia situada à margem esquerda do rio, cuja localização é 3°47_10_ S  56°48_43_ O.
Passamos pela aldeia Kuruatuba às 9h24. Situada à margem direita do rio, sua localização no GPS é 3°46_28_ S  56°48_35_ O.
Depois foi a vez de passarmos pela aldeia Novo Airão às 9h46. Também situada à margem direita do rio, sua localização é 3°46_6_ S  56°48_27_ O.
Às 10h02, passamos pela aldeia São Raimundo, outra situada à margem direita do rio. Sua localização: 3°43_56_ S  56°47_32_ O
Finalmente às 10h17 chegamos no porto da aldeia Fortaleza. Sua localização: 3°42_58_ S  56°47_12_ O. Também à margem direita do rio Andirá.

Novamente na aldeia Fortaleza

Ao nos aproximar da aldeia Fortaleza, escutamos o som de música. Isto indicava um ambiente de festa na aldeia. O motivo é a cerimônia da tucandeira. Ao chegarmos já vi que as crianças estavam pintadas de preto, principalmente o rosto e as mãos. Usam jenipapo como tinta.
Vi também que estavam preparando uma luva, pintando-a para a cerimônia. A luva nova é pintada de vermelho do colorau (urucum) nas bordas.
Outro grupo estava em mutirão fazendo limpeza, cortando o capim alto em volta da aldeia com facão ou terçado.
Tinham também duas roçadeiras manuais.




Preparando a luva

Mutirão de limpeza

Visitamos a capela, que fica um pouco afastada da aldeia, é de madeira e está um pouco abandonada. A capela é grande: 8 por 16 m. É coberta com telha de zinco. Tempos atrás deu um vendaval e danificou um pouco o telhado. O piso é de terra batida. Estão querendo fazer um novo piso de cimento. Além de alguns furos no teto feitos pelo vendaval, o telhado não foi bem feito, ou seja, a junção entre as duas águas está com problemas e deixa passar água, por isso chove dentro. Na parede do fundo há um crucifixo grande e alguns cartazes. A igreja não é pintada e tem um pequeno sino. Está sendo pouco usada. As celebrações normalmente têm sido feitas na escola. O catequista se chama Francisco Carvalho de Souza. É irmão do “tu i çá”.


A capela

Vista interna da capela

Visitamos o cemitério. Não dá para perceber que é um cemitério. Fica no meio das árvores e não há nenhum sinal de cova ou sepulcro. Disseram-nos que colocam uma cruz de madeira quando enterram alguém, mas depois que apodrece não a repõem. 
Depois visitamos o “tu i çá” Didico Carvalho de Souza. Ele estava em Barreirinha, quando estivemos ali na segunda-feira. É cacique há 32 anos.


O cemitério

O ritual da Tucandeira[26]
Os Sateré-Maué mantêm a tradição de realizar o ritual da tucandeira. Atualmente só as aldeias católicas realizam este rito. As aldeias batistas não o realizam mais. Não consegui descobrir exatamente o porquê. O ritual consiste em um adolescente ou jovem ou mesmo adulto enfiar a mão numa luva de palha com muitas formigas atadas e dançar abraçado com pessoas da aldeia. A formiga usada é a tucandeira, que tem um ferrão que ferra muito doído – a dor dura 24 horas, segundo dizem. Quem começa, deve fazer 20 vezes e não somente uma.
Há muito mito sobre esta cerimônia. A primeira coisa é que não é um rito de passagem, como muitos acham e dizem. Por exemplo: o site Planeta Selvagem afirma falsamente que “Algumas tribos de índios brasileiros, como a dos maués, submetem seus adolescentes a um rito de iniciação sexual que consiste em expô-los, a fim de testar sua valentia, às terríveis picadas da tocandira. Só os jovens que resistem à prova, por volta dos 14 anos de idade, são tidos por emancipados e aptos para o casamento”.[27] Isso não é o que ouvi dos Sateré-Maué. Talvez no tempo passado fosse um rito de passagem, mas no presente o não é. Nenhum adolescente ou jovem é obrigado fazer. Se não fizer não há qualquer castigo ou desprezo. O nosso piloto Dicarmo só aguentou até a 5ª vez. Como teve uma reação forte, provavelmente alérgica, desmaiou. Por isso não pôde continuar.
Fazer toda a cerimônia completa da tucandeira tem um significado também para a saúde do homem. Para os Sateré-Maué, quem faz a experiência por 20 vezes se torna um homem mais forte, mais resistente à dor e às doenças em geral. Torna-se um caçador e um homem verdadeiro e forte. Torna-se mais esperto, mais trabalhador e não tem preguiça, porque a ferrada da tucandeira é um antídoto para tudo isso e cria anticorpos na pessoa.
É proibido uma mulher tocar no candidato depois que ele enfiar a mão na luva pela primeira vez até a 10ª vez. Não pode nem tocar na mão para cumprimentar e nem dançar tocando nele. O motivo é que de acordo com a mitologia e tradição Sateré a tucandeira tem origem na mulher. Se uma mulher tocar no candidato, a formiga fica com ciúme e vai ferrar mais profundamente para provocar uma dor maior. A mulher pode dançar junto enquanto está acontecendo a cerimônia, mas deve pegar no braço ou na mão dos outros que estão dançando e nunca na mão ou no braço do candidato. Quando o candidato é casado, ele tem que se afastar da sua esposa até a 10ª vez. Deve ficar inclusive em outra casa.
Após o candidato colocar a mão nas luvas pela 10ª vez, ele é riscado no ombro e peito com um dente de paca ou unha de tatu-açu. Chega a sair sangue e isto é visto como um troféu. Tira-se sangue para mostrar que o sangue velho e ferroado com veneno da tucandeira vai sair e vai ser formado o sangue novo de uma pessoa forte e rígida. É dito que assim como a mulher para se purificar tem a menstruação, ou seja, perde sangue, o homem também deve perder seu sangue para ser purificado do veneno injetado pela tucandeira.
Depois de fazer as 20 vezes previstas, o candidato pode continuar fazendo. Por exemplo: o “tu i çá” Didico da aldeia Fortaleza fez 52 vezes. Encontrei um senhor que tinha feito 48. O professor Henrique fez 47 e meia. Perguntei se ele iria completar as 48 vezes. Ele disse que não, porque sua idade não permitia mais. Quando faz numa mão só – como seria desta vez – é considerada meia vez.
Quem vai enfiar a mão na luva com formiga pela primeira vez tem que fazer um certo regime que dura até a 19ª. Não pode comer carne de caça, carne vermelha, carne de boi e de peixe. Mas pode comer carne de galinha. Depois que é picado a primeira vez deve comer castanha-do-pará ou castanha de caju. Também é utilizado torrar a formiga e dar para o candidato como alternativa para o jejum da carne e de peixe. O candidato que vai fazer a primeira vez deve usar uma touca ou espécie de chapéu como proteção para evitar queda de cabelo. Se não usar a touca ou chapéu, corre o risco do cabelo cair e ele pode ficar careca. 

O ritual na aldeia Fortaleza

As formigas, capturadas no mato, foram adormecidas em água misturada com suco de folha de caju. Depois atadas na luva com o ferrão bem saliente na parte interna da luva. A maior parte do corpo da formiga fica do lado de fora.


As formigas amarradas na luva

Como tinha muita areia e o chão estava muito seco, o que faria levantar pó, foi jogada água para deixar o solo um pouco mais molhado ou úmido para evitar poeira enquanto se dança.
Enfiaram dois paus verticalmente e amarraram horizontalmente um pau atravessado, ligando os dois paus verticais. O pau horizontal foi tirado de uma árvore chamada tachizeiro, que é conhecida como árvore da formiga. O cacique colocou a plumagem na ponta da luva e depois a atou no pau horizontal.




O rapaz que fez a prova se chama Anedilson Batista Menezes. Está com 18 anos e já fez a experiência 21 vezes. Esta será a 22ª vez, ou melhor, será a 21ª e meia, visto que só colocará uma luva e só é contada meia. É solteiro. Ele vai colocar só uma luva porque só foi preparada uma, visto que era uma apresentação para nós e ele já tinha feito mais de 20 vezes.
Antes de começar amarraram no joelho do rapaz uma espécie de chocalho para quando for dançar fazer barulho.


O candidato à prova: Anedilson Batista Menezes


Chegou um rapaz tocando uma espécie de flauta. O som é semelhante ao de uma sirene de navio. A flauta chama-se Huhu (o H é aspirado, ou seja, um “r” bem fraco). O huhu era tocado pelos ancestrais. É tocado para ir buscar a formiga e para avisar que a cerimônia vai começar.
O ritual começou às 16h10. Primeiro foi tocado o huhu. Depois o Anedilson foi onde estava a luva com as formigas, pegou a luva, ergueu, deu umas respiradas fundas e a entregou ao condutor do ritual. Este enfiou na mão do rapaz. Pela contração do rosto, dava para perceber que a dor era intensa. Ele começou a girar em torno de si batendo o pé. Depois o condutor se aproximou e pegou no braço do rapaz. Em seguida o cantor também se aproximou e pegou no outro braço. Começaram a dançar juntos batendo o pé. Em seguida passaram a rodar em torno dos paus verticais e horizontal. Depois se juntaram mais dois rapazes e algumas crianças, inclusive meninas.
Terminou 16h16, ou seja, durou em torno de 6 minutos.








Apareceu mais um corajoso para fazer a prova. Foi tirar a luva de um e colocar na mão do outro. Sua prova começou às 16h17. Tudo foi igual à primeira, a não ser que se juntaram um pouco mais de crianças.
O segundo a fazer a prova foi o Ademilson Reis Bulcão. É casado está com 26 anos e tem duas filhas. Com esta é a 25ª vez que ele enfia mão na luva cheia de formiga tucandeira. Ele é professor na escola da aldeia.
No final o cacique tomou a luva colocou na ponta de uma vara e a içou fora do salão. As formigas ficaram ali até morrer.

Indo até a aldeia Vila Nova

Saímos às 16h50 da aldeia Fortaleza, descendo o rio até a aldeia Vila Nova. Fomos na voadeira do professor Dinilton Batista da Silva, ele iria até a aldeia Torrado, que fica bem mais abaixo. Lembrando que a nossa voadeira tinha sido levada até a Vila Nova porque tinha quebrado uma asa da hélice e que a rabeta que utilizamos para ir até as aldeias de cima, era do professor Henrique, que mora na aldeia Fortaleza, por isso a rabeta devia ficar ali. Como era descendo a correnteza, a viagem correu tudo bem e foi mais rápida. Chegamos às 17h33. Percorremos em torno de 10 km em 43 minutos.
A aldeia Vila Nova tem como localização: 3°39_18_ S  56°47_46_ O.
Dormimos ali nesta aldeia.


Quinta-feira - Dia 15 de março de 2018

Tomamos café na casa do cacique. Durante o café conversamos muito sobre a situação indígena no Brasil em particular sobre os problemas que os Sateré-Maué têm enfrentado principalmente nas áreas da educação e saúde.

DESCENDO O RIO ATÉ A ALDEIA LIMOAL

Nosso objetivo do dia era chegar até a aldeia Limoal, que é a primeira aldeia Sateré-Maué subindo o rio Andirá no Estado do Pará. Foi-nos colocada à disposição uma rabeta, cujo piloto seria o Jacó Miquiles, ou seja, o próprio “tu i çá” da aldeia Vila Nova.
Iniciamos a nossa viagem rio abaixo às 10h25. Na rabeta estávamos em quatro: Jonas, Leonardo, Jacó e eu.
A temperatura estava bem agradável e o céu, quase totalmente nublado. De cara já deu pra perceber que rio tinha bem menos paus do que lá pra cima. Como o movimento é maior, há mais gente para cortar os paus e árvores que caem no rio. Ambas as margens são cobertas por mata em toda a extensão do rio Andirá, tanto pra cima como pra baixo da Vila Nova

Aldeia Kutiponte

Passamos pela entrada da aldeia Kutiponte às 10h02. Situada à margem direita do rio, sua localização é 1°23_25_ S  48°28_25_ O. Está 7,2 km da Vila Nova.

Aldeia Monte Oliveira 

Às 11h19 paramos aldeia Monte Oliveira para uma visita. Situada à margem esquerda do rio Andirá, sua localização é 3°36_31_ S  56°49_42_ O. Está a 10,8 km da aldeia Vila Nova.
Esta aldeia é bastante nova. Foi fundada em janeiro deste ano. São quatro famílias que estão morando nesta aldeia, todas provenientes da aldeia Novo Ayrão. O cacique se chama Maédio de Oliveira. Ele tinha saído para levar as crianças para a escola na aldeia vizinha. Conversamos com a esposa dele e com mais alguns moradores.
Chamou-nos a atenção a existência de um galinheiro tradicional feito com folha de palmeira e em forma de cone. Foi-nos dito que dentro há poleiros e que um animal predador não consegue entrar para comer das galinhas.


O galinheiro tradicional dos Sateré-Maué

Aldeia Campos

Prosseguimos a viagem às 11h32. Quase 1 km abaixo está a aldeia Campos. Situada à margem direita do rio, sua localização é  3°36_13_ S  56°49_38_ O. Está 11,6 km distante da aldeia Vila Nova. Moram na aldeia 48 pessoas de 11 famílias. Chegamos ao porto da aldeia às 11h38.
Fizemos uma parada para uma visita. No rio havia algumas crianças nadando brincando e uma mulher lavando roupa. Tivemos que caminhar uns 300 metros para chegar até a aldeia.
Ao chegar, vimos que estavam entregando cestas básicas. Estas eram entregues para pessoas doentes e aposentadas, segundo nos disseram. Na primeira casa havia um senhor que estava fazendo uma espécie de cadastro. Havia várias pessoas em fila esperando a vez para se cadastrar. Eu o cumprimentei e me apresentei como bispo de Itaituba. Ele me perguntou: “de Itaituba?” Respondi: “sim”. Ele me perguntou: “Então você é muito conhecido nessa cidade?” Respondi que sim. Ele ficou quieto. Percebi que ele não queria papo.
Conversamos um pouco com alguns moradores e nos encontramos com o cacique da aldeia Monte Oliveira. Ao retornar para o porto, vi que o homem do cadastro tinha sumido e que não havia mais fila. Fiquei com a nítida impressão de que minha presença ali o incomodou.
Continuamos a nossa viagem rio abaixo às 12h03.



Aldeia Campos

Foz do igarapé do Arco 

Passamos pela entrada (foz) do Igarapé do Arco. Sua localização: 3°36_13_ S  56°49_38_ O, este igarapé é afluente da margem direita do rio Andirá. Neste igarapé há as aldeias Santa Maria do Arco e Santa Cruz. A aldeia Santa Cruz será a última a visitarmos, mas não será subindo o igarapé do Arco e sim indo a pé desde a Vila Nova.

Aldeia Kukuí

Passamos, sem parar, pelo porto da aldeia Kukuí às 12h28. Está localizado no ponto do GPS 3°34_30_ S  56°50_1_ O e 16,2 km de Vila Nova. Fica na margem direita do rio.
Abaixo da Kukuí, o rio Andirá tem uma correnteza bem lenta. Também o rio é mais largo. É a influência do rio Amazonas, que represa a água. É mais plano consequentemente que sem muita queda. Só dá para perceber que a água está correndo quando tem uma planta ou pau dentro da água.

Aldeia Vista Alegre

Às 12h40 passamos, sem parar, pela aldeia Vista Alegre. Sua localização: 3°34_7_ S  56°50_16_ O. Situada à margem direita do rio.
As 12h41 entramos num furo para encurtar um pouco o nosso caminho.
As 12h51 passamos pela entrada do igarapé Aracu. É a entrada para as aldeias Marapatá e São Marcos. Localização: 3°33_29_ S  56°51_35_ O

Terra Prometida

Em frente está a aldeia Terra Prometida. Localização: 3°33_27_ S  56°51_34_ O.
É uma aldeia nova. Situada na margem direita do rio Andirá. Também passamos direto sem parar.

Aldeia Torrado

Chegamos no porto do Torrado às 13h06. Localização: 3°32_33_ S  56°51_44_ O.
Fizemos uma parada para visitar a aldeia e combinar a nossa visita oficial no dia seguinte. A aldeia está situada no alto distante 300 m do rio. A subida é de 31 m.


Porto da aldeia Torrado

Barcos da linha Parintins e Barreirinha

Estava ali no porto o cacique da aldeia São Marcos que é o Alício Batista Miquiles.
O Torrado é o porto onde os barcos de Parintins e Barreirinha atracam. Havia cinco barcos atracados, cujos nomes eram: Pai Edgar, Kauã Henrique, Vitor Leonam, MF Guimarães e C.P.S.M.
Logo encontrei um palmeirense. Ele me disse que a maioria dos moradores da aldeia torce para o Palmeiras, inclusive que o time da aldeia se chama Palmeiras. Toquei no assunto, porque vi pintado numa casa o escudo do Palmeiras, como se pode ver na foto.




Há vários pés de guaraná.
A aldeia Torrado tem uma mulher como Tuxaua, é a dona Santa Batista.
Fomos até a capela para uma oração e encontro. Primeiro me deram as boas-vindas e depois a palavra. Disse sobre os motivos da minha visita: convite dos que foram ao encontro da Repam e pra conhecer os Sateré-Mawé que foram evangelizados pelos Carmelitas. Contei um pouco da história dos Carmelitas em Parintins. Falei sobre o Sínodo da Amazônia e do sonho do Papa sobre em cada aldeia ter um próprio padre índio. Foi feita uma tradução. Depois fiz uma oração que foi concluída com Pai nosso, ave Maria, glória e bênção.  Foi cantado um cântico em Sateré e depois em português. Por ser uma aldeia de católicos, combinamos uma missa no dia seguinte.
Há 22 famílias e 112 moradores, sendo 35 crianças.
Saímos às 14h39.

Vista externa da capela

Vista interna da capela


Aldeia Ponta Alta

Atracamos no porto da aldeia Ponte Alta às 14h48. A localização do GPS indicava: 3°32_2_ S  56°51_52_ O. A aldeia, situada à margem direita do rio, fica distante da margem e deve-se subir uma ladeira muito longa e íngreme. Como o Leonardo queria dar um aviso para o cacique, ele e o piloto foram até a aldeia. O Jonas e eu ficamos numa sombra à beira-rio esperando eles voltarem.

Aldeia Limoal

Chegamos às 15h39 no porto da aldeia Limoal. Para chegar até a aldeia tivemos que subir uma ladeia de uns 400 m, mas que não é muito íngreme. Sua localização: 3°31_15_ S  56°52_6_ O
Em 1964 o local começou a ser utilizado como porto. Mas como aldeia oficialmente foi fundada em 1993. Vilson Menezes é considerado seu fundador. Ele plantou muitos limoeiros e outras frutas. Na hora de dar nome para aldeia, devido ao grande número de pés de limão, deram o nome de Limoal. Ainda hoje há vários limoeiros. Tem 15 famílias e 82 moradores. A escola e uma igreja estão em construção. A igreja é de tijolos. Tem quatro professores e um agente de saúde. É a primeira aldeia Sateré-Maué no estado do Pará subindo o rio Andirá.
O “tu i çá” chama-se Zenilton José da Silva. Ali mora a Gecivânia Carvalho que esteve na reunião da Repam em outubro do ano passado. Ela morava na aldeia Santo Antônio, mas se mudou para o Limoal no início deste ano.
Fomos até o salão comunitário. Ali conversamos e por fim comecei a mostrar para as crianças alguns vídeos que eu tinha no computador, principalmente de onças pegando jacarés, pescarias, cobras e outros animais. Todas vibravam!



Numa das casas encontramos um gavião real que eles tinham matado e empalhado. Eu nunca tinha visto um gavião daquele tamanho. Para se ter uma ideia do tamanho da sua envergadura, o Jonas fez uma pose com os braços aberto para uma foto.




À noite rezei missa na capela em construção com boa participação. Um rapaz tocou teclado para animar os cânticos. A capela é dedicada a Nossa Senhora do Carmo. Havia uma imagem que estava rachada. Por isso levei uma nova e maior. Benzei a imagem e entreguei à comunidade.
Ficamos numa casa de uma família. Também desta vez não houve problemas com as redes.


Sexta-feira - Dia 16 de março 

Tomamos café e conversamos sobre a situação atual do povo Sateré-Maué, sobretudo a respeito das dificuldades na educação e saúde, pontos fracos em todas as aldeias. Durante a conversa ficamos sabendo que a Sesai estava entregando cestas básicas. As cestas são para pessoas idosas, mulheres grávidas e doentes. É a primeira vez que estão fazendo isto.
Devíamos sair da aldeia Limoal logo após o café, mas enquanto estávamos tomando café e conversando, começou a chover. Foi uma chuva forte e prolongada. A chuva fez com que atrasássemos a nossa saída. A missa na aldeia Torrado devia ser às 9h, mas só pudemos sair após às 9h30.

Missa na aldeia Torrado

Quando chegamos no Torrado, fomos direto para a capela. Estava vazia. Também ali havia chovido muito. Foi tocado o sino e o povo foi chegando pouco a pouco. A missa foi muito animada. Os cantos em sua maioria foram em Sateré.
Dei de presente para a comunidade uma imagem de Santa Teresinha do Menino Jesus como exemplo concreto de alguém que tinha devoção ao Menino Jesus, visto que a comunidade tem como padroeiro o Menino Deus ou Menino Jesus.






Após a missa almoçamos e conversamos com os professores e mais algumas pessoas sobre a cultura e costumes dos Sateré-Maué. O professor Olindo Andrade Monteiro, que é flamenguista nato e fanático, disse que não concorda que o Sateré sejam “mawé”. Em outras palavras, ele não concorda que os Sateré sejam “papagaio falante” (= tradução da palavra mawé). Para ele, a palavra “mawé” do nome Sateré-Maué significa “mal é”, porque os Sateré eram muito guerreiros, belicosos e valentes.

Saímos de Torrado às 16h14. O objetivo era subir o rio até a Vila Nova, mas ir visitando aldeias.

Aldeia Terra Prometida

Chegamos à aldeia Terra Prometida às 16h25 para uma pequena visita. É uma aldeia Batista.
Situada na margem direita do rio, sua localização é 3°33_27_ S  56°51_35_ O. Fica distante 220 m da margem do rio e tem uma subida ou um aclive de 33 m.
Vivem ali 72 moradores e 17 famílias. Esta aldeia é bastante nova, não tem um ano, visto que foi fundada no dia 24 de abril de 2017. Os moradores são provenientes da aldeia Marapatá. Aldeia já tem uma escola com quatro professores. O cacique é o senhor Rosário Batista.
Prosseguimos a nossa viagem às 16h50.


Vista parcial da aldeia Terra Prometida

Escola


Aldeia São Marcos

Chegamos na aldeia São Marcos às 17h05 para uma rápida visita. É uma aldeia católica.
Localização: 3°34_19_ S  56°51_47_ O.
Situada na margem esquerda do igarapé Aracu. Deve-se subir uma ladeira íngreme de 130 m e 38 m de altura. Tem 10 famílias e 48 pessoas. Aldeia foi fundada em 1995. O fundador é senhor Alício Batista Miquiles. A capela está em construção.
Saímos às 17h37.


Aldeia São Marcos

Capela São Marcos

Aldeia Marapatá

Chegamos na aldeia Marapatá às 17h46 para uma pequena visita. É uma aldeia católica.
Localização: 3°34_4_ S  56°51_46_ O.
Aldeia situada à margem esquerda do igarapé Aracu. Tem como padroeira Santa Maria. Celebram sua festa dia 1º de janeiro. São nove famílias e 46 moradores. Deve ter sido fundada em 1970. O fundador foi o tuxaua Paulo Garcia. O atual “tu i çá” é Isaac Carvalho Miquiles.
A capela, dedicada a Santa Maria, está em construção. Tem o telhado e as paredes do lado direito e do lado esquerdo. As paredes do fundo e da entrada ainda não foram erguidas assim como o piso não foi feito. O catequista se chama Luzenildo Garcia.


Escola


Saímos às 18h09, ainda estava claro, mas aos poucos foi escurecendo até ficar totalmente escuro. O fato de haver mata cerrada em ambas as margens, aumenta a escuridão.
A uma certa altura, quando passávamos por um pedral, algo pulou dentro da rabeta e começou a se debater bem junto dos meus pés. Instintivamente ergui as pernas e foquei a lanterna. Era um peixe piau. Uns dois minutos depois outro piau saltou dentro da rabeta. Desta vez era maior do que o primeiro. Ficamos na expectativa de que outros pulassem, mas a nossa torcida não funcionou.
Chegamos às 20h37 em Vila Nova. Jantamos os dois piaus e fomos dormir, porque estávamos muito cansados.

Sábado - Dia 17 de março

Enquanto estávamos tomando café na casa do cacique geral, apareceu um senhor que iria plantar “Pau-rosa”. Pau-rosa é uma árvore que produz uma essência usada em perfumes. Por exemplo: é uma das matérias-primas do famoso perfume francês Chanel n° 5 e de vários perfumes europeus e americanos. “Devido aos riscos de extinção, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) condiciona os extratores de óleo de pau-rosa a fazer a reposição de mudas segundo quantidade exportada, sendo 80 mudas para cada tambor de 180 kg de óleo exportado; e condiciona o corte de seus troncos, na Amazônia, a 50 cm do solo, para que haja rebroto. Entretanto, o Ibama calcula que, entre 2003 e 2008, as exportações do pau-rosa tenha sido cerca de 500% maiores que as permitidas” (Wikipédia).
Os Sateré produziram muito óleo do pau-rosa no passado, ou seja, até a criação do Parque Nacional da Amazônia. Com isso o escoamento não poderia mais ser feito e assim foi deixada atividade de lado. Agora estão retomando seu plantio e exportação.

Visita à aldeia Santa Cruz

Saímos a pé às 9h21 rumo a aldeia Santa Cruz, a última a ser visitada. A previsão era de 2 horas de caminhada. Estávamos em cinco: o Leonardo, o Jonas, o capitão Welinton, sua esposa Ada e eu. A Ada é nascida na aldeia Santa Cruz e sua mãe ainda vive ali.
Passamos por uma plantação de pau-rosa, açaí, cumaru, andiroba e outras plantas. Tudo é plantado dentro da própria mata. É feita uma roçada e vai-se plantando as mudas das árvores em fila. O pau-rosa é plantado a uma distância de 5 m entre uma muda e outra. Em cada fila planta-se de 100 a 150 mudas.





Chegamos, bastante suados, na aldeia Santa Cruz às 11h17. Tivemos que subir 3 ladeiras bastante íngremes. A última subida foi mais ou menos de 1 km com um aclive de 67 m. Localização: 3°38_20_ S  56°45_31_ O. Está situada na margem direita de um braço do igarapé do Arco. A distância percorrida foi em torno de 6,5 km.
Deu para aguentar bem a caminhada, apesar das 3 ladeiras. Na última, parei 3 vezes para tomar fôlego.



Vista parcial da aldeia Santa Cruz

Ao chegar, encontramos o professor Henrique da aldeia Fortaleza. Em seguida encontramos a dona Catarina que tem 76 anos e é a mãe do “tu i çá”. Almoçamos na casa dela. Tinha feijão com carne e farinha de mandioca. Estava muito gostoso. Mas antes do almoço foi-nos oferecido duas cuias de guaraná para beber. Foi o guaraná autêntico e não o refrigerante. Eu me senti mais revigorado depois de tomar o guaraná.
Após o almoço fomos tomar um banho no riachinho. Foi muito refrescante e gostoso. Pra chegar no local tivemos que descer uma ladeira muito íngreme e longa. E foi maravilhoso ver que havia muitos peixinhos. Para subir ladeira fiz três paradas, como de costume.
Após o banho choveu muito e nós aproveitamos para dar uma boa repousada na rede. Ficamos na casa do professor Henrique. Ele dá aulas na aldeia Fortaleza e nos finais de semana vai para a aldeia Santa Cruz, onde continua morando sua esposa.
Segundo uma versão que ouvi, esta aldeia foi fundada no século XIX após a revolta da Cabanagem. Mas parece que esta informação carece de fundamento histórico. É certo que os Sateré-Maué participaram da Cabanagem e que depois foram perseguidos e tiveram que sair da região de Parintins e subir o rio Andirá. Segundo esta versão, a aldeia Santa Cruz pode ter sido a primeira aldeia fundada no alto Andirá.
Já foi uma aldeia muito importante. Hoje está um pouco esvaziada. No passado era a única que tinha escola. Por isso foi uma aldeia com bom movimento e que atraiu muitos de outros lugares. Depois os professores locais passaram a dar aula também nas outras aldeias. Com isso houve um esvaziamento da aldeia Santa Cruz. No ano passado foi aldeia que mais produziu guaraná em todo o Andirá. No momento só nove famílias estão morando na aldeia Santa Cruz.


Antiga capela

Janela para a nova capela
A aldeia possui um motor para produzir energia elétrica, mas também possui duas bombas para puxar água do igarapé. A água é para todos e algumas casas tem água encanada.
É uma das poucas aldeias que tem um rádio para se comunicar com a Funai e com as outras aldeias.
Esta aldeia comemora a sua festa no dia 14 de setembro, ou seja, no dia da festa da Exaltação da Santa Cruz. Mas os festejos começam já no dia 10. Entre outras coisas fazem bingo, leilão e outras atividades. No bingo colocam prêmios tais como: dinheiro, telhas de Brasilit, bicicleta, fogão, rede, macaco e frango assados, jabuti vivo e outros animais. No bingão do ano passado os 5 prêmios foram: uma rede, um fogão de mesa, R$ 500, uma bicicleta e R$ 1.000.
Depois da festa eles fazem um grande mutirão de limpeza. Proibiram soltar foguetes porque, segundo eles, a fumaça provoca uma epidemia de gripe entre os indígenas.
O padre italiano Henrique Uggé chegou a primeira vez nesta aldeia em 1972. Ele, para ajudar os indígenas, promoveu a educação e a saúde. Construiu uma escola e uma capela.
Celebrei a missa às 17h na nova capela Santa Cruz, que está em construção – falta os acabamentos. Todos os moradores participaram. Um grupo, inclusive com duas crianças, sustentou bem os cantos. Após a missa distribuímos pirulitos e balas doces para todos.


Nova capela


Jantamos um frango com arroz e farinha, na casa da mãe do “tu i çá”. Depois ficamos por um bom tempo conversando. Foi-nos oferecido várias vezes guaraná.
Dormimos na casa do professor Henrique. Não havia pernilongos ou carapanãs.

Domingo - 18 de março de 2018

O último dia da nossa estada entre os Sateré-Maué amanheceu chuvoso. Assim tivemos que esperar a chuva parar. Por isso só nos foi possível sair às da aldeia Santa Cruz às 9h50. Novamente teríamos que vencer a pé os 6,5 dentro da mata. Porém, desta vez não teríamos nenhuma ladeira para subir e sim só para descer.
Chegamos na Vila Nova às 11h26. A volta foi mais rápida: 1 hora e 36 minutos. As pernas já mostravam sinais de mais cansaço do que no dia anterior.
Como na aldeia há um telefone público, fui telefonar para a Marilza Farias, secretária da Prelazia, para que ela avisasse o piloto do avião que ele poderia vir antes da hora combinada. Tínhamos acertado para ele vir nos buscar às 15h. Ela me disse que estava chovendo muito em Itaituba.
Na volta do telefone até a casa do cacique geral, vi numa casa um jogo de camisa do Palmeiras no varal. Parei para tirar uma foto. Procurei me informar e descobri que na aldeia Vila Nova há um time de futebol chamado Palmeiras. É um time das equipes femininas. Portanto, Palmeiras é um time conhecido aqui no alto Andirá. Só para recordar, lá no Torrado também há um time chamado Palmeiras. Senti orgulho do meu time do coração. A dona do time chama-se Orlândia Miquiles. Prometi mandar-lhe uma toalha do Palmeiras. Tirei uma foto da dona do time.


Orlândia Miquiles


Após o almoço, visitei o posto de saúde da aldeia Vila Nova. Encontrei a enfermeira Vanessa Santos e a técnica Leideneze Tavares. Ambas são de Parintins.




Às 14h30 fomos até o campo de pouso esperar o avião. Pelo menos a metade da população da aldeia nos acompanhou. Havia muitas crianças e adolescentes. Como o avião demorava chegar, ficamos impacientes e temerosos de que poderia não vir, visto que estava chovendo muito em Itaituba. O cacique geral Cândido e o cacique da aldeia Bom Jardim queriam ir junto, se houvesse lugar no avião.
Finalmente pelas 16h40 escutamos o barulho do avião. Foi um alívio!
Quando conversamos com o piloto sobre a possibilidade do cacique geral e do “tu i çá” irem juntos, ele foi enfático e direto: “Não dá! A pista é curta e está segurando muito o avião na hora da decolagem. É arriscado a gente bater nas árvores”. Assim não foi possível os dois irem junto conosco.
Levantamos voo às 16h51. A viagem demorou 32 minutos. Foram 135 km da Vila Nova até Itaituba. Viajamos numa velocidade média de 253 km.




[1] Vou usar a grafia Maué (com “u”) e não Mawé (com “w”), porque estamos no Brasil e falamos Português. Com “w” seria aceitar a influência da língua inglesa em que o “w” se pronuncia com “u”. O Pe. Henrique Uggé, que trabalha há década com os Sateré-Maué, usa o “u” em seu livro “As bonitas Histórias SATERÉ-MAUÉ”. Evidentemente que nas citações manterei a grafia original.
[2] Os participantes foram: Cândido Dias de Oliveira (cacique geral), Leonardo Martins e Jaime Batista (aldeia Vila Nova); Gecivane Carvalho Menezes (aldeia Ponte Alta); Dídico Carvalho (cacique da aldeia Fortaleza); Gaspar Cristino de Souza (cacique da aldeia Terra Preta); Maédio de Oliveira (aldeia Novo Airão); Samuel Batista (cacique da aldeia Bom Jardim); Paulo Batista (aldeia Alegria no rio Uaicurapa) e Daniel Oliveira de Souza (cacique da aldeia Conceição).
[3] No Brasil, há dois grandes troncos linguísticos: o Tupi e o Macro-Jê. Além disso há 19 famílias linguísticas que não podem ser agrupadas em troncos. Também há famílias de apenas uma língua, comumente chamadas de “línguas isoladas”, por não se revelarem parecidas com nenhuma outra língua conhecida.
[4] A Língua Geral no Amazonas deu origem no século XIX ao Nheengatu, que ainda é falado no alto Rio Negro.
[5] A Cabanagem ou Guerra dos Cabanos foi a revolta popular ocorrida durante o Império do Brasil na Província do Grão-Pará. A revolta se estendeu pelos atuais estados do Pará, Amazonas, Amapá, Roraima e Rondônia. Começou dia 6 de janeiro de 1835 e terminou em 1840. Os índios e mestiços tiveram uma participação significativa na insurreição. Cerca de 40 mil pessoas morreram nos conflitos da Cabanagem, em sua maioria índios e escravos. Os povos que mais sofreram foram os Mura e Maué.
[6] TEIXEIRA, Pery (org.). Sateré-Mawé: Retrato de um Povo Indígena. Manaus, 2005, p. 22.
[7] Cf FIGUEROA, Alba Lucy Giraldo. Guaraná, a máquina do tempo dos Sateré-Mawé. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, v. 11, n. 1, p. 55-85, jan.-abr. 2016. DOI: <http://dx.doi.org/10.1590/1981.81222016000100005.>
[8] FIGUEROA. Guaraná, a máquina do tempo, p. 55.
[9] FIGUEROA. Guaraná, a máquina do tempo, p. 57-61.
[12] PRAT André. Notas Históricas sobre as Missões Carmelitas no Extremo Norte do Brasil. Recife, 1941, p. 243-246.
[13] ASV - Arch. Nunz. Lisbona, vol. 86 (4), 73.
[14] Dom Romualdo de Souza Coelho nasceu em Cametá (PA) dia 7 de fevereiro de 1762. Foi ordenado sacerdote aos 23 nos de idade dia 19 de fevereiro de 1785. Sendo nomeado bispo de Belém dia 28 de agosto de 1820, sua ordenação episcopal aconteceu dia 1º de abril de 1821. Faleceu aos 79 anos de idade dia 15 de fevereiro de 1841.
[15] Dom Manoel de Almeida Carvalho.
[16] ASV- Arch. Nunz. Lisbona, vol. 86 (4), 74.
[17] Cf. PRAT. Notas Históricas, APÊNDICE, p. 64.
[18]O Pontifício Instituto das Missões Exteriores – PIME – é uma comunidade internacional de sacerdotes e leigos que anunciam o Evangelho de Jesus Cristo ao redor do mundo. Originário de 1850 em Milão, Itália, o PIME hoje está presente em 18 países, nos cinco continentes. No Brasil o PIME chegou em 1946 graças ao incentivo do Papa Pio XII, e hoje está engajado com a Animação Missionária e Vocacional, na Pastoral – nas paróquias onde está presente – e nos Meios de Comunicação Social através da Editora Mundo e Missão”. Página oficial do PIME-Brasil.
[19] Até a data presente todos os bispos da Diocese de Parintins são do PIME.
1 - Dom Arcângelo Cerqua, PIME (1961-1989)
2 - Dom Giovanni Risatti, PIME (1989–1993)
3 - Dom Gino Malvestio, PIME (1994-1997)
4 - Dom Giuliano Frigeni, PIME (1999-  )
[20]Entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento, libertação, existem de fato laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que há de ser evangelizado não é um ser abstrato, mas é sim um ser condicionado pelo conjunto dos problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não se pode nunca dissociar o plano da criação do plano da redenção, um e outro a abrangerem as situações bem concretas da injustiça que há de ser combatida e da justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica, qual é a ordem da caridade: como se poderia, realmente, proclamar o mandamento novo sem promover na justiça e na paz o verdadeiro e o autêntico progresso do homem? Nós próprios tivemos o cuidado de salientar isto mesmo, ao recordar que é impossível aceitar "que a obra da evangelização possa ou deva negligenciar os problemas extremamente graves, agitados sobremaneira hoje em dia, no que se refere à justiça, à libertação, ao desenvolvimento e à paz no mundo. Se isso porventura acontecesse, seria ignorar a doutrina do Evangelho sobre o amor para com o próximo que sofre ou se encontra em necessidade" (EN 31).
[21] Timbó é um cipó tóxico que possui a capacidade de asfixiar e matar peixes em poucos minutos. A planta também é conhecida como cururu-apé, guaratimbó, mata-fome, timbó iurari, timbosipo e tingui.
[22] O termo cacique é o mais usado tanto na língua portuguesa como espanhola para designar a principal liderança indígena, mas cada grupo indígena possuía uma denominação e concepção próprias para suas lideranças.
Os Guarani usam a palavra Mburovixá. Os tupis usam morubixaba, murumuxaua, muruxaua, tubixaba e tuxaua.

[23] Mercador que viaja de barco e vende mercadorias aos ribeirinhos.

[24] Nasceu na Espanha em 1506. Estudou em Paris e foi um dos primeiros companheiros de Santo Inácio de Loyola na fundação dos jesuítas. Ordenado sacerdote em Roma, partiu para as missões do Oriente em 1541. Durante 10 anos foi missionário incansável na Índia e Japão. Morreu quando estava indo para China. Foi beatificado em 1619 e canonizado em 1622. Sua festa é celebrada dia 3 de dezembro.
[25] Assim o bicho-preguiça é chamado ali.
[26] A tucandeira (Paraponera clavata) também conhecida como chia-chia, formiga-agulhada, formiga-cabo-verde, formiga-de-febre, formigão-preto, formigão, naná, saracutinga, tec-tec, tocainará, tocandera, tocandira, tocanera, tocanguira, tocanquibira, tocantera, tracutinga, tracuxinga, tucanaíra, tucandeira e outros nomes. Em espanhol: Hormiga bala.

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