quinta-feira, 15 de abril de 2021

Frei Enedino Caetano Pereira, O.Carm.



 

Frei Enedino Caetano Pereira, O.Carm.

 

O filme “O Ébrio” com Vicente Celestino é excepcional. É uma das grandes produções do cinema brasileiro. Dirigido por Gilda de Abreu, esposa de Vicente Celestino, conta a história da ascensão e decadência de um famoso médico chamado Gilberto Silva. Ainda que seja em preto e branco e produzido em 1946, vale a pena assistir a esse filme. Está no YouTube! É emocionante!

Quase no final do filme, uma escritora procurava uma história para seu novo livro. Ela foi ao “Café da Paz”, cujo dono era um português. Um dos seus acompanhantes ofereceu uma garrafa de cachaça para um bêbado (Vicente Celestino) ali presente para que contasse a sua história. A escritora pergunta-lhe o motivo pelo qual se embriagava. Ele pegou um violão e contou a sua história compondo a canção “O Ébrio”.

Querendo escrever uma pequena história, não fui ao “Café da Paz” ou a outro lugar para me inspirar, mas busquei no armazém da minha memória uma história de alguém que marcou a minha vida. Voltei aos tempos da infância e adolescência e, de repente, surgiu a imagem do frei Enedino Caetano Pereira. Decidi contar a sua história e algo da sua influência na minha vida!

Tudo começou no dia 13 de janeiro de 1964, foi o dia em que o conheci. Naquele dia visitei pela primeira vez o Seminário Imaculada Conceição de Graciosa, distrito de Paranavaí, no estado do Paraná. Era uma segunda-feira. 

O padre carmelita, frei Mathias Warneke, reitor do seminário, estava em Nova Londrina substituindo o pároco Pe. Vicente Magalhães Teixeira, que tinha ido de férias para o Ceará, sua terra natal. O padre “Puxa Carrrramba”, como era chamado pelos seminaristas por usar constantemente a expressão com o “r” bem arrastado, aproveitou para fazer propaganda do seminário. Queria levar meninos que tinham terminado o curso Primário e que desejavam ser padres. Naquele tempo o ensino tinha a seguinte divisão: Primário (4 anos), Ginásio (4 anos), Colegial (3 anos) este, com as opções para os cursos: Científico, Clássico, Normal (formava professores para lecionarem no curso primário) e Comércio (para atuação na contabilidade). Depois, o obrigatório vestibular para entrar numa faculdade. Vale lembrar também que, após o término do Primário, para entrar no Ginásio era necessário fazer um “mini vestibular” chamado de Exame de Admissão. Frei Mathias decidiu levar os interessados para conhecerem o seminário. Havia somente dois pretendentes: Ciro Longo e eu. Mas o frei Mathias levou também os seminaristas nova-londrinenses do seminário de Maringá que estavam de férias. Lotou uma kombi. E lá fomos nós felizes e ansiosos para conhecer o seminário de Graciosa.

Assim que chegamos, apareceu o seminarista, Enedino, nos oferecendo melancia. Comparando com nossa idade, já era madurão: 27 anos. Mostrava um rosto muito sereno e alegre, que me impressionou. Fiquei pensando: aqui deve ser muito bom, porque este rapaz parece ser muito feliz. Esta primeira impressão reforçou a minha decisão de ir estudar lá.

Frei Enedino Caetano Pereira nasceu em Brumado, BA, no dia 08 de dezembro de 1946. Perdeu a mãe quando ainda era menino e seu pai tinha lábio leporino. A família migrou para o Paraná e se fixou na comunidade Água do Barreiro, zona rural do município de Paranavaí.

Sua vocação para o sacerdócio foi tardia, ou seja, depois dos 18 anos. Como era da roça, pouco tinha estudado. Com muito esforço terminou o Primário e entrou no seminário dos padres carmelitas de Graciosa, concluindo, em 1964, o Ginásio. Neste ano fomos colegas no seminário. Ele terminando e eu começando.

Todos os seminaristas tinham uma enorme estima e admiração pelo Enedino, que era visto como protótipo de seminarista. Era calmo, tranquilo, reservado, estudioso, patusco, trabalhador e tinha uma espiritualidade exemplar. Fazia parte do coral do seminário. Não sei se ele era santista ou “pelezista”, como se dizia na época, ou seja, seu time do coração era o Santos Futebol Clube.

O Enedino era um bom aluno, gostava do latim e de jogar futebol. Seu rival nos estudos de latim era o Guido Feuser. Por falar no Guido, cultivamos uma boa amizade até hoje. Ele saiu do seminário no final daquele ano e depois se formou advogado. Mais tarde se tornou promotor de justiça em Santa Catarina. Todas as vezes que nos encontramos, falamos sobre a situação atual da Igreja e recordamos os bons tempos de seminário. Quando recordamos sobre como o estudo no seminário era “puxado”, sempre mencionamos o latim e fazemos “provas” um com o outro sobre questões da língua do Lácio.

O Guido tem uma posição muito pessimista em relação às atualizações provocadas pelo Concílio Vaticano II. Ele é pouco favorável ao aggiornamento, ao ar novo para a Igreja desejado pelo saudoso Papa São João XXIII ao convocar o Concílio. Ele dizia que o Cursilho de Cristandade, que na época era o mais forte e ativo entre os movimentos eclesiais, iria causar um cisma na Igreja. Sempre o contestei em suas afirmações pessimistas em relação à Igreja pós-conciliar. Uma vez nos encontramos, já estávamos nos anos de 1990. Recordei-lhe a sua afirmação sobre o possível cisma e lhe disse que o tal cisma não aconteceu e nem iria acontecer. Prontamente, ele, rindo, com uma entonação de voz bem solene respondeu: “O Cursilho em si já é um cisma!” 

Como ele sabe que fui um bom aluno de latim, gosta de me provocar. Ele estudou muito mais latim do que eu. Durante todo o período de ginásio, teve aulas da língua latina todos os dias e eu só duas vezes por semana, porque o latim já estava saindo da grade curricular dos estudos seminarísticos. Uma vez me pediu para declinar a palavra “senex” (ancião, velho). Na “bucha” de pronto declinei: senex (nom.), senis (gen.), seni (dat.), senem (acu.), senex (voc.), sene (abl.). Ele contestou: “errou! porque é senex, senecis!” Respondi: “Quem errou foi você! Aprendi que certas palavras da terceira declinação são parassilábicas, têm o mesmo número de sílabas no nominativo e no genitivo. A “Ars latina”, o livro em que você e eu estudamos latim, apresenta alguns exemplos de palavras parassilábicas que tínhamos que decorar. Ficaram na minha memória: senex, pater (pai), mater (mãe), frater (irmão), accipiter (gavião), ...” Ele foi humilde o suficiente para reconhecer e dizer: “Você tem razão! Eu é que me confundi”. Nossas conversas são sempre divertidas e com muitas risadas por causa de suas asserções eclesiais. Lamento não ter tido a oportunidade de me tornar um bom latinista, visto que eu gostava muito do latim. O motivo é que, quando entrei no seminário, o latim gradativamente estava sendo deixado de lado, mas, mesmo após mais de 50 anos, ainda recordo muita coisa de latim.

Ao concluir o ginásio no seminário de Graciosa, frei Enedino foi para o Seminário Nossa Senhora do Carmo de Itu, onde fez o ensino médio. Com ele foi o seu companheiro de turma Antônio Carlos Amaro de Faria. Depois ele iniciou o curso de Filosofia em Belo Horizonte e o terminou em Curitiba. O curso de Teologia fez em Curitiba no antigo Instituto de Teologia de Curitiba (ITC). Era um bom e atualizado curso, que levava em consideração as decisões do Vaticano II e as conclusões de Medellín. Ali estudavam os seminaristas das dioceses de Santa Catarina que deixaram de estudar no ITC quando foi fundado o Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC) em 1973. Isto impossibilitou a continuidade do ITC por falta de alunos e assim foi fechado no final daquele ano. Mas os carmelitas freis Enedino e Antônio Ferraz tinham concluído o curso em julho de 1972 e já estavam ordenados. Os seminaristas que não tinham terminado o curso no ITC, em maioria se transferiu para o Studium Theolgicum de Curitiba. Um deles foi o frei Estanislau José de Souza, O.Carm, o primeiro carmelita a estudar nesta escola de Teologia dos claretianos. Ali eu também estudei a Teologia.

Frei Enedino foi ordenado diácono em 31 de julho de 1971 e padre dia 08 de dezembro do mesmo ano. Ambas as ordenações foram na então co-catedral São Sebastião de Paranavaí, tendo como bispo ordenante Dom Benjamin de Sousa Gomes. Com ele foram ordenados o carmelita frei Antônio Ferraz Júnior e um grupo da Congregação dos Oblatos de Cristo Sacerdote, fundada pelo Pe. Januário Baleeiro de Jesus e Silva, OCS.

Machado de Assis, em seu conto Manuscrito de um Sacristão, conta que o lente de retórica do seminário onde o sacristão filósofo – autor no Manuscrito - estudou, dizia: — “A teologia é a cabeça do gênero humano, o latim a perna esquerda, e a retórica a perna direita”. Sempre tive a impressão de que o frei Enedino “coxeava da perna direita” por não ser um inflamado pregador, ou seja, não era de entusiasmar multidões. Como o Pe. Teófilo da história contada pelo sacristão, frei Enedino sabia muito as coisas de teologia, filosofia, latim, história sagrada, porém, faltava algo na hora de fazer a homilia: a retórica. Até explicava bem a doutrina, mesmo sem os recursos da retórica. Conseguia transmitir sempre uma boa mensagem. Falo isto porque o escutei todos os domingos nos seus dois primeiros anos de sacerdócio exercidos na Paróquia Nossa Senhora da Conceição da Vila Fanny em Curitiba. Mas isto não o impediu de ser um bom e santo sacerdote, que eu sempre admirei e que me influenciou e influencia até hoje.

Em certa ocasião conversei sobre as dúvidas que estavam aparecendo em relação à minha vocação. Eu queria ter certeza de que era chamado. Na verdade, eu queria que Deus me desse um sinal e esse sinal não aparecia. Pra minha surpresa, ele me disse que teve esta mesma dúvida por anos e anos. O sinal nunca chegou como ele desejava, mas que encontrou certeza da vocação pela paz e alegria que sentia e também em textos bíblicos. Citou-me vários, mas um de Jeremias ficou na minha memória: Quanto a mim, estou em vossas mãos. Fazei de mim o que achardes melhor, mais correto” (Jr 26,14). Anos mais tarde, já padre e pároco em Paranavaí, caiu-me nas mãos um folheto com a Oração do Abandono de Charles de Foucauld. Comecei a rezá-la, porém, já na primeira parte senti um arrepio. A oração pedia para que eu me abandonasse a Deus e que Ele fizesse de mim o que quisesse. Nessa hora o diabo atentou e me enviou o pensamento: e se Ele me mandar uma doença que me fará sofrer muito ou que fique cego? Dei uma respirada forte, e me questionei recordando as palavras acima de Jeremias. Eu já tinha me entregado nas mãos de Deus e tinha dito que ele poderia fazer de mim o que achasse melhor. Decidi rezar com mais confiança e entusiasmo na certeza de que Ele só me dará o que for melhor pra mim, mesmo que seja o sofrimento. Rezei a oração diariamente por um longo tempo. Como é uma bela oração, decidi incluí-la aqui.

Oração do Abandono de Charles de Foucauld

Meu Pai, 

Eu me abandono a Ti, 

Faz de mim o que quiseres. 

O que fizeres de mim, 

Eu Te agradeço. 

Estou pronto para tudo, aceito tudo. 

Desde que a Tua vontade se faça em mim 

E em tudo o que Tu criastes, 

Nada mais quero, meu Deus. 

Nas Tuas mãos entrego a minha vida. 

Eu Te a dou, meu Deus, 

Com todo o amor do meu coração, 

Porque Te amo 

E é para mim uma necessidade de amor dar-me, 

Entregar-me nas Tuas mãos sem medida 

Com uma confiança infinita 

Porque Tu és... 

Meu Pai!

 

Frei Enedino sempre foi humilde, alegre, responsável e sem grandes ambições. Nunca o escutei manifestando o desejo de ser bispo ou de ocupar algum alto cargo na Igreja ou na Ordem. Também não cobiçava as meias roxas dos cônegos ou monsenhores. Era ferrenho defensor e admirador do Papa. Lia todos os documentos papais e falava dos mesmos com entusiasmo. Especificamente defendia a posição do Papa na encíclica Humanae Vitae (1968). Recordo-o comentando as Exortações Apostólicas Marialis Cultus (1974) e Evangelii Nuntiandi (1975) do brilhante São Paulo VI.

Toda a sua vida ativa como padre, frei Enedino a viveu na década de 1970, ou seja, desde a sua ordenação presbiteral em 1971 até 1979, quando foi acometido por um problema de saúde, que o deixou muito limitado para exercer com normalidade o seu sacerdócio entre os fiéis. Consequentemente foi padre numa época muito especial na História da Igreja.

Foi um tempo de grande ebulição na vida eclesial. Estava-se implantando as reformas do Concílio, iniciadas pouco depois da última sessão conciliar de 8 de dezembro de 1965. A impressão que se tinha é de que havia uma certa anomia, ou seja, ausência de lei ou de regra, anarquia e desorganização na vida da Igreja. Por exemplo: o Código de Direito Canônico, que havia sido promulgado em 1917, era ridicularizado como ultrapassado e sem validade. Um novo Código de Direito Canônico só foi promulgado em 1983. Muitos padres “deixaram a batina” e se casaram. O mesmo aconteceu com irmãs religiosas. As vocações diminuíram e muitos seminários foram fechados. Os movimentos tradicionais como Cruzada Eucarística, Filhas de Maria e Congregados Marianos desapareceram ou se tornaram insignificantes na maioria das paróquias e comunidades. O Apostolado da Oração foi uma exceção e continua forte e atuante em quase em todos os lugares até nossos dias. Se alguns movimentos desapareceram, surgiram novos, tais como: Cursilho de Cristandade, Movimento Familiar Cristão e outros na linha da pastoral familiar. Para os jovens surgiram o TLC, JAM, Emaús, Jornada, PJ e outros que entusiasmaram e evangelizaram a juventude. Surgiram as CEBs e muitas pastorais. Apesar de certos exageros na aplicação dos decretos conciliares, a renovação era necessária e produziu muitos bons frutos.

Dois pontos que afetaram muito o ritmo eclesial do povo foram: a missa e a devoção aos santos.

A missa era em latim e o padre celebrava de costas para o povo. Rezava-se o terço durante a missa. O povo assistia a missa, não participava como hoje. As pessoas só podiam receber a comunhão ajoelhadas e na boca. As mulheres deviam usar um véu na cabeça. O Concílio, através da Constituição Conciliar SACROSANCTUM CONCILIUM - SOBRE A SAGRADA LITURGIA, promoveu uma significativa reforma no rito da missa. A missa passou a ser celebrada na língua vernácula, ou seja, do país – é bom que se diga que a missa em latim nunca foi abolida, tanto é que está no missal e o Papa constantemente a celebra. O povo deixou de assistir e passou a participar. O padre preside olhando para o povo. Colocou-se com destaque as duas mesas: da Palavra e da Eucaristia. Não é necessário mais ficar de joelhos pra receber a comunhão e é dada também na mão. Leigos fazem as leituras e preces. Nas missas hoje canta-se muito mais do que antigamente. Em resumo: hoje está bem melhor do que antes do Concílio.

Em relação à devoção aos santos, todos os dias havia uma lista de santos a serem recordados. Havia mais dias santos de guarda. Tendo em vista que a celebração de tantíssimos santos parecia que escondia a pessoa de Jesus, o Concílio estabeleceu uma reforma no calendário litúrgico e que somente os santos mais significativos deveriam ser recordados. Por isso foram tirados das celebrações diárias vários santos populares, como São Jorge. Erradamente dizia-se que foram “cassados”, isto é, que deixaram de ser santos. Não! Os santos que foram tirados do calendário podem ser recordados nas celebrações sem problemas, só que não é mais obrigatório.

Aquela situação pós-conciliar me faz lembrar o primeiro livro de Samuel quando diz: “Naqueles dias, a palavra do Senhor era escassa e as visões não eram frequentesMas nem tudo estava perdido ou fora de controle porque “A lâmpada de Deus ainda não tinha se apagado”. Naqueles anos muitos bispos e padres escutaram o chamado de Deus e deram a mesma resposta de Samuel: “Fala, teu servo escuta” (1Sm 3,1-2.10). Não tenho dúvidas de que esta sempre foi a resposta dada por frei Enedino. Ele sempre estava atento pra escutar a voz de Deus, tendo com exemplo a Virgem Maria (cf. Lc 1,26-38; 11,27-28)

Nas décadas de 1960-70 não houve grandes e significativas mudanças apenas na Igreja, houve também uma enorme efervescência na vida político-social no Brasil e no mundo. Quero recordar em nível mundial apenas a denominada “Primavera de Praga”, em 1968. No Brasil, em 1964, começou a ditadura militar, que descambou com violação de direitos humanos, torturas, cassações de mandatos de políticos que não liam na cartilha oficial, limitações de direitos, desaparecimento de pessoas, censura de jornais e meios de comunicação, rádios foram lacradas arbitrariamente – como a Rádio 9 de Julho da Arquidiocese de São Paulo, fechada por decreto do presidente Emílio Garrastazu Médici em novembro de 1973 - e tantas outras barbaridades. Tudo tão evidente e conhecido, mas há quem negue. Isto me faz recordar o texto de Isaías: “Este povo é cego, embora tenha olhos perfeitos, ... este povo é surdo embora tenha ouvidos” (Is 43,8). 

Quando, em 1973, comecei estudar Filosofia na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, ainda estava em vigor o Decreto-Lei nº 477, de 26 de fevereiro de 1969, baixado pelo “ditador presidente” Arthur da Costa e Silva. O insuspeito senador Jarbas Passarinho, que foi ministro da Educação e Cultura de novembro de 1969 a março de 1974, considerou este decreto como "draconiano" e o apelidou ironicamente com "Terceira Lei de Newton Depravada" – por causa da desproporção entre a intensidade da ação e da reação. Esteve em vigor até 1979, quando foi promulgada a lei da anistia. Este decreto definia as infrações disciplinares praticadas por professores, alunos e funcionários de estabelecimentos de ensino público ou particulares. Era a maneira que a ditadura tinha para tentar controlar o pensamento e reflexões ideológicas nas universidades e escolas. Todos tinham medo de serem enquadrados pelo famigerado decreto. Os professores podiam ser sumariamente exonerados e impedidos de dar aulas por cinco anos; e os alunos, expulsos e proibidos de se matricular em qualquer outro estabelecimento de ensino pelo prazo de três anos.

A ditadura militar afetou diretamente a democracia no Brasil. A posição da Igreja foi firme e decisiva para a redemocratização e a volta do Estado Democrático de Direito. Os documentos promulgados pela CNBB tiveram impactos excepcionais para pôr fim à tortura e gradativamente voltar às eleições amplas e livres em todos os níveis. Por exemplo: não havia eleições diretas para presidente, governador e para prefeitos das capitais e áreas decretadas de segurança nacional – houve até a indicação dos chamados senadores biônicos para que o governo militar pudesse ter a maioria no Congresso Nacional. A Igreja foi a primeira instituição a falar contra a tortura e a violação dos Direitos Humanos durante da ditadura militar no Brasil. Quando toda a sociedade clamava contra a tortura e a violação dos Direitos Humanos, a Igreja mudou o discurso e começou a falar de redemocratização. O principal documento lançado pela CNBB neste sentido foi: “EXIGÊNCIAS CRISTÃS DE UMA ORDEM POLÍTICA” (1977). Tudo isto teve um desgastante custo para a Igreja: prisões, torturas e assassinatos de padres e leigos, expulsão de sacerdotes estrangeiros e até o sequestro de Dom Adriano Hipólito, bispo de Nova Iguaçu.

Analisando a caminhada de Igreja pós-conciliar e a atual, sob a direção do Papa Francisco, não tenho receio de aplicar as palavras do Senhor anunciadas pelo profeta Isaías: “Estou fazendo coisas novas e já estão despontando: ainda não percebeis?” (Is 34,19).

Frei Enedino percebeu os sinais dos tempos e apoiou as reformas promovidas pelo Vaticano II. Enfrentou toda a ebulição eclesial pós-conciliar, bem como as “papagaiadas” políticas da época, com muita serenidade e sobretudo com muita fé e esperança.

Ouso afirmar que o desejo de frei Enedino foi sempre de ser um humilde padre carmelita. Porém, ele pediu para fazer uma experiência durante três anos como diocesano em Planaltina do Paraná. Não aguentou, por isso voltou para a vida conventual antes do tempo previsto e foi morar no Seminário de Graciosa, onde fez sua Profissão perpétua dia 15 de janeiro de 1977.

Sobre seu jeito de viver a espiritualidade, encontrei em seu diário: “Estou vivendo um momento muito rico. Meu pensamento se ocupou, hoje, com a jaculatória: “Meu Deus e meu tudo”. 

Substitui todos os pensamentos negativos ou inconvenientes.

O que mais devo procurar? Se Ele é tudo para mim? O que mais devo desejar, se Ele é tudo o que existe de desejável para o homem?” (22/02/79).

Era maio de 1979, quando começou sua dolorosa paixão. Foi em Graciosa que, durante o café da manhã, aconteceu algo muito estranho. Frei Enedino pegou o bule de café e o colocou debaixo do braço. Começou andar em torno da mesa com os frades atônitos olhando sem entender. Após dar três voltas, caiu perdendo a consciência. Foi levado para o hospital em Paranavaí e depois para Curitiba. Na capital do Paraná foi atendido pelo Dr. Benjamin Smaniotto, que tinha estudado no Seminário de Graciosa junto com frei Enedino. Em Curitiba foi constatado que ele estava com um tumor na cabeça e tinha que ser operado. Suas chances de sobreviver eram pequenas. Mas como enquanto há vida, há esperança, ele foi submetido à intervenção cirúrgica. Foi um sucesso, mas ele teve só uma melhora temporária e depois os problemas voltaram. Foi um verdadeiro Calvário, que durou quase 8 anos.

No mês de setembro ele começou piorar. Foi constatado que ele estava com três tumores na cabeças e vários em formação. As previsões eram de que ele não passaria do final de outubro. Passou! No início de novembro a previsão era até o final do mês. Entrou dezembro e ele continuava vivo. Ele falava que morreria no dia 08 de dezembro, dia do seu aniversário de nascimento e ordenação presbiteral. Por coincidência seria também o dia da minha ordenação presbiteral. Não morreu e as novas previsões eram de que não chegaria até o fim do ano.

Na semana, após o Natal, - não sei precisar o dia – antes da missa das 19h30, ele começou a passar mal e ter fortes convulsões. Eu, já ordenado, corri para o quarto. Fiquei com a nítida impressão de que seria o seu fim. Pedi para um dos nossos estudantes chamar o frei Justino para dar a Unção dos Enfermos. Eu ainda não tinha ministrado este sacramento e o frei Justino, como o superior da casa, era quem devia fazê-lo. Ele ministrou a unção. Como eu tinha a missa, fui presidi-la. Apresentei como intenção principal: o pedido de saúde para o frei Enedino e disse que provavelmente após a missa já estaria morto. Não sei bem como consegui rezar aquela missa. Ao terminar fui direto para o quarto. Para minha surpresa e alegria, frei Enedino estava sentado jantando. Foi um verdadeiro milagre!

No início de janeiro o médico disse que não tinha explicação o fato dele ainda estar vivo e que não faria mais qualquer previsão, mas queria fazer uma nova tomografia para ver como estavam os tumores. Frei Enedino disse que não aceitava fazê-la porque não queria matar a curiosidade de ninguém. A tomografia não foi feita. Ele foi se recuperando aos poucos, entretanto nunca mais voltou ao normal. Como sequelas: não conseguia pronunciar bem as palavras e tinha alguma dificuldade para andar. Também não conseguia mais raciocinar como antes. Porém, em geral conseguia rezar a missa todos os dias na capela do convento.

Uma de suas marcantes alegrias durante aquele período de enfermidade foi a visita de seu amigo de turma Antônio Carlos Amaro de Faria, que no tempo de seminário tinha o apelido de Grandão. Os dois terminaram juntos o ginásio e foram juntos para o seminário de Itu. Depois o Grandão deixou o seminário, nunca mais os dois tinham se encontrado. Na época ele estava fazendo curso de diácono permanente. Frei Enedino não teve a alegria de ver seu amigo ser ordenado diácono permanente, mas eu tive a alegria de, no dia 8 de dezembro de 1989, participar da ordenação diaconal do Antônio Carlos Amaro de Faria. O bispo ordenante foi o futuro Cardeal Dom Eusébio Oscar Scheid, que era bispo da Diocese de São José dos Campos. Foi a última ordenação de Dom Eusébio nesta diocese. Depois foi transferido para a Arquidiocese de Florianópolis e mais tarde para o Rio de Janeiro. E lá se vão já mais de 31 anos!

Outro colega de turma a visitar o frei Enedino foi o Guido Feuser. Foi quem mais o visitou durante seu período de enfermidade. Destas visitas, o que ficou na memória do Guido foi a grande demonstração de otimismo do frei Enedino de que ficaria totalmente curado e a sua profunda devoção a Nossa Senhora.

Neste período do seu sofrimento, ele mostrou toda a sua fé. Enfrentou a doença com resignação, paciência e oblação total. Nunca vi ou ouvi o frei Enedino reclamando por causa da doença. Continuou sendo o que sempre foi: uma pessoa alegre, de fé e muito perseverante nos compromissos. Rezava a missa todos os dias na capela do convento, atendia confissões e dava conselhos aos estudantes. Seu jeito simples de encarar a situação de enfermidade sempre foi um exemplo para mim.

Em seu diário, no dia 04 de março de 1981, frei Enedino escreveu: “Sou o homem mais feliz do mundo! O motivo, a razão é o fato de que creio, profundamente, que Deus me ama muito e eternamente, apesar de que sou um pobre pecador. Esta verdade a senti, de um modo todo especial, durante a minha doença, que me prostrou do dia 09 de maio de 1979 até hoje -, torn[an]do-me inválido, tornou-me inválido para os homens, mas para Deus, Ele tornou a minha vida muito mais fértil com o adubo da sua Graça abundante. Só tenho a agradecer a Deus e a sua Mãe e minha mãezinha, a Virgem Maria do Monte Carmelo..

Obrigado, Senhor!

Conversando com frei Aleixo a respeito do frei Enedino, ele me disse que sempre se lembra da alegria, paciência e resignação diante das limitações provocadas pela doença.

Toda a sua luta pela vida terminou no dia 24 de janeiro de 1987 ao falecer no convento carmelita de Curitiba. Uns dois anos antes, frei Enedino pediu para o Frei Francisco Manuel de Oliveira, mais conhecido como frei Chico, para que na hora de sua morte ele rezasse o salmo 50(51) e o cântico de Nossa Senhora Magnificat (Lc 1,46-55). Por coincidência, o frei Chico estava presente nos momentos da agonia de frei Enedino. Ele se recordou e rezou em voz alta as duas orações. Frei Enedino entregou-se nas mãos de Deus pouco antes do fim do Magnificat. Seu corpo foi levado para Paranavaí e sepultado no dia seguinte na cripta da Igreja São Sebastião.

Parodiando o inesquecível locutor Fiori Gigliotti digo: “Frei Enedino não pode ser esquecido. Ele merece ser lembrado. Frei Enedino ficará por todo o sempre incrustado na ternura e sinceridade do nosso cantinho da saudade!”

Obrigado, frei Enedino pelo exemplo e testemunho!

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

Itaituba, abril de 2021.


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