domingo, 16 de maio de 2021

Preta, pobre e feia

Ir. Isaldete


 “Preta, pobre e feia”

 

Em nosso último encontro, na mesa tomando café, a Ir. Isaldete contou-me que, depois de uma Semana Catequética, ao voltar para casa confidenciou à sua mãe que queria ser freira. Sua mãe, com voz baixa e trêmula, respondeu “Oh, minha filha! Elas não vão te aceitar, porque você é preta, pobre e feia ”. Rimos muito e na hora percebi que isto daria uma bela história. Aproveitei para especular sobre sua vida. Depois, na medida em que ia escrevendo, ela foi me passando, via Whatsapp e e-mail, novas informações sobre seus sentimentos e vida. No final, saiu este relato.

Conheci a irmã Isaldete Almeida da Silva, em abril de 2011, em Jacareacanga, PA. Foi também o meu primeiro contato com religiosas da Congregação da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, fundada em Santarém em 1910.[1] Na oportunidade, eu estava indo para a Missão São Francisco, no rio Cururu, para a abertura das comemorações do centenário da missão com os indígenas Munduruku. Viajamos juntos um dia inteiro, de voadeira, pelos rios Tapajós e Cururu. Foi uma grande experiência para mim, tanto é que a considero meu “batismo” como bispo na Prelazia. Desde o primeiro contato, a Ir. Isaldete me chamou a atenção pela sua alegria e por ser uma pessoa disposta a enfrentar qualquer situação. Ela me acompanhou em visitas às casas dos indígenas.

A família da Isaldete, procedente do Maranhão, era muito católica e fiel participante na comunidade. A própria moça era catequista e participava do grupo jovem. A resposta da mãe expressa bem o que está lá no fundo do coração das pessoas pretas e pobres: um sentimento de que muitas portas estão fechadas para elas, inclusive na Igreja. Felizmente esta situação está mudando. Antes, havia poucos padres e irmãs afrodescendentes. Hoje já existe um bom número, inclusive vários bispos. Há mais ou menos uns 5 ou 6 anos foram nomeados no Brasil, no período de apenas um ano, 5 novos bispos negros.

Deus tem seus próprios caminhos (Cf. Is 55,8) e não tem só um modo de chamar as pessoas. A Bíblia, tanto no Antigo como no Novo Testamento, está cheia de exemplos de vocações em meios, situações e lugares diversos. Hoje, Deus continua chamando e das mais variadas formas. Vou dar alguns exemplos:

Esta história escutei num retiro em 1964, pregado pelo frei Otávio, no seminário dos carmelitas em Graciosa, Paranavaí, PR. Eu estava com 11 anos e só recordo uma única coisa de tudo aquilo que nos foi falado. O pregador contou-nos que uma adolescente passeava pelas ruas de Belo Horizonte. De repente, avistou numa casa de caridade um letreiro, escrito em Latim: “CARITAS ET BONITAS”, que significa: “Caridade e Bondade”. Para ela, a tradução daquelas palavras seria: CARETAS BONITAS. Pensou: Esta casa de caridade é só para quem tem uma cara bonita e como eu tenho, vou ser freira aqui. E entrou para a congregação daquelas irmãs de caridade.

Dias atrás escutei mais uma vez a música “Ela tornou-se freira”. A canção, composta e cantada pelo gaúcho Teixerinha – com a Mary Terezinha, conta a história de uma moça que se tornou freira e apresenta como motivo uma desilusão amorosa. Esta é apenas mais uma canção com final feliz, mas a vida real mostra que até numa desilusão ou decepção uma pessoa pode descobrir o chamado de Deus, como aconteceu com Santo Afonso Maria de Ligório. Só que com este santo não foi uma desilusão amorosa e sim profissional. Ele era um memorável e bem-sucedido advogado em Nápoles, Itália. Sua fama se estendia por todos fóruns jurídicos italianos. Em certa ocasião perdeu uma causa de grande repercussão em que falhou na argumentação, causando-lhe uma violenta desilusão moral. Este fato fez com que refletisse mais sobre a vida e sobre os desígnios de Deus. Por isso, decidiu abandonar tudo e seguir a vida religiosa.

A minha vocação tem sua origem no dia do meu batismo. Eu estava com quatro meses. Minha mãe conta que, durante o batizado, eu agarrei a estola do frei Ulrico Goevert, O.Carm., que estava me batizando. Ele disse: “Este é um sinal de que este menino será padre” e me deu uma bênção. Cresci ouvindo esta história e eu sempre dizia que queria ser padre. Minha família era profundamente católica, inclusive em casa, diariamentese rezava o terço após o jantar. Eu participava da Cruzada Eucarística e não faltava às missas dominicais, apesar de ser “um garoto traquina”, muito levado e briguento. Quando fui para o seminário, alguns fizeram apostas sobre quando eu seria expulso do seminário. Lá, três vezes fui ameaçado: “Na próxima vez você arruma a mala e vai para casa”. Como eu queria continuar, fui me corrigindo. E assim tive também um final feliz.

Voltando à vocação da jovem Isaldete, vou compará-la à freira da música do Teixeirinha. Se você não conhece, aí vai a letra: 

Ela tornou se freira[1]

(Ele = Teixerinha)

Morena dos olhos triste/sempre lhe encontro chorando 

Me digas qual é a mágoa/que está te atormentando 

Sou seu amigo e não posso ver seu pranto derramando 

(Ela = Mary Terezinha) 

Sim meu amigo é verdade/é tão grande a minha dor 

Já fui alegre e feliz/nesse mundo enganador 

Hoje só me resta mágoa/das juras falsas de amor 

(Ele) 

Isso eu já tinha notado/desde a hora em que lhe vi 

Que o seu pobre coração/sofre o mesmo que eu sofri 

Juras falsas e desengano de um amor que conheci 

(Ela)

Amigo lamento muito seu sofrimento também 

Eu fui desprezada um dia quando eu mais queria bem 

Vou envelhecer com a mágoa/não amarei mais ninguém

(Ele) 

Por favor não digas isso/não se dê por derrotada 

Vai-se um amor acha outro por uma melhor estrada 

És tão jovem e tão bonita esqueça a mágoa passada 

(Ela) 

Sim se eu pudesse esquecer/eu esqueceria agora 

Não adianta ser bonita se é só um que a gente adora 

Sou escrava da lembrança do amor que foi embora 

(Ele) 

Então aceite um conselho/de seu amigo que sou

Visto que seu coração/por um só se apaixonou 

Escreva para vir de volta/esse que te desprezou 

(Ela) 

Não escrevo e não aceito/de volta mais esse amor 

Sou uma moça honrada/sou pura e tenho valor 

Amanhã já serei freira de Cristo nosso senhor 

(Ele/ela) 

Hoje lá em uma igreja no altar da santidade 

Tem uma freira rezando sem pecado e sem saudade 

Esqueceu aquele amor que era pura falsidade 

Curou o seu coração é irmã de caridade 

Nas suas preces ela pede: Pai eterno de bondade, 

Mande paz e amor na terra para toda humanidade.   

 

A Isaldete estava com 18 anos quando sentiu mais forte o chamado de Deus para ser freira. A moça da música deveria ter mais ou menos a mesma idade.

As duas são morenas, mas a Isaldete é mais escura e mostra de maneira evidente que é afrodescendente.

As duas são bonitas. O Teixeirinha diz “És tão jovem e tão bonita” ao que ela responde: “Não adianta ser bonita”. Apesar da mãe da Isaldete chamá-la de feia, ela tem um rosto que mostra toda a beleza da raça negra. Seus lábios estão sempre sorrindo e os olhos brilhando, manifestando a felicidade e a alegria do seu coração. Como não recordar do salmo que diz: “Vossos lábios espalham a graça, o encanto, porque Deus, para sempre, vos deu sua bênção” (44,3). Ou é como diz Machado de Assis no seu conto Ponto de vista: “Com os lábios fala a cabeça, com os olhos o coração”. Se alguém julgar que a Isaldete é feia, aplico a máxima latina: “De gustibus et coloribus non disputandum est” (Sobre gosto e cores não se discute) e não discuto, porque é perda de tempo.

As duas tiveram uma desilusão! A freira da música teve uma desilusão amorosa e a Isaldete foi o sentimento de desprezo por ser “pobre, preta e feia”. Uma tristeza e uma desilusão instalou-se em seu coração, como ela mesma diz. Em sua cabeça só apareciam os questionamentos: “O que vai ser da minha vida? Por que eu tinha que ser ‘pobre, preta e feia’? Por que Deus me deu uma vida tão sofrida?” Temporariamente seus olhos ficaram tristes, no entanto, ela não permitiu que a chama de sua vocação e a luz da esperança se apagassem por completo em seu coração.

A motivação da vocação à vida consagrada das duas é bem diferente. A freira da música foi uma desilusão amorosa. A vocação da Isaldete tem sua origem na vivência cristã de sua família e no seu engajamento na comunidade paroquial, onde era uma entusiasmada e dedicada catequista. Mas como ela mesma conta, o testemunho dos padres verbitas da sua paróquia foi de fundamental importância para o seu despertar vocacional. Eles eram irlandeses, falavam arrastado, às vezes ficavam sem paciência e davam broncas, contudo eram movidos por um grande espírito missionário e de doação ao povo. Iam para as comunidades rurais de carona, de bote, de carroça e muitas vezes a pé. Enfrentavam sol e chuva para levar a Palavra de Deus e os sacramentos, sem reclamar. A imagem que ficou na memória da jovem Isaldete foi a dos missionários chegando a pé em sua comunidade com os sapatos cobertos de pó ou enlameados. Caminhavam 7 km e se hospedavam na casa dela. Ela não conhecia freiras. Ela só pensava: se eu fosse um rapaz, iria ser padre que nem esses missionários. Eram os padres conhecidos como Patricinho e Patricião. Certamente receberam o nome de Patrício por causa de São Patrício, que é o padroeiro da Irlanda.

A situação da Isaldete começou a mudar dois anos depois, quando ela se mudou para a casa de seu irmão Djalma. Sua cunhada Laurinete fazia parte das voluntárias da Pastoral da Criança. Uma freira foi até Trairão para dar um curso de formação para as líderes da Pastoral. Era a Ir. Amélia Lage. A possibilidade de conversar com a religiosa fez com que reacendesse em seu coração a esperança de concretizar sua vocação. Seus olhos voltaram a brilhar e transmitir alegria. Confiante conversou com a freira. Esta a aconselhou a conversar com as irmãs de Itaituba. Foi o que ela fez. Elas entraram em contato com a casa central da Congregação de Santarém e apresentaram a possível candidata. A resposta foi novamente um verdadeiro balde de água fria: o estudantado, que acolhia jovens do interior para estudar e que queriam ser irmãs, só tinha 12 vagas e estas já estavam preenchidas. Só havia 6 beliches, portanto não haveria lugar para ela.

Ela não desistiu. Resolveu confidenciar ao padre da paróquia suas inquietudes vocacionais. Ele lhe disse que seria possível ela se tornar freira e que iria conversar com as irmãs de Santarém, pois as conhecia. A primeira resposta foi novamente de que as vagas estavam preenchidas e que ela deveria esperar para o ano seguinte. Além deste, havia outro problema: ela tinha estudado só até a 6ª série. Mas o pároco insistiu: “É uma moça honrada, pura, tem valor e é bem engajada na comunidade. Ela será uma boa religiosa!”. Por fim foi aberta uma exceção e o aspirantado começou com 13 jovens interessadas em ser religiosas. Das 13, só a “pobre, preta e feia” perseverou até o fim e tornou-se freira. Deus tem os seus caminhos e o seu tempo!

Ainda comparando as duas, a maneira de reagir em relação à frustração e desilusão foi bem diferente. A freira da música, como é normal nestes casos, ficou triste e magoada. Isto é expresso no verso “Hoje só me resta mágoa”. Ficou sem esperança: “Vou envelhecer com a mágoa” e não via possibilidade de reação ou de futuro: “Sou escrava da lembrança”. Mas reagiu: 

Amanhã já serei freira de Cristo nosso Senhor 

Hoje lá em uma igreja no altar da santidade 

Tem uma freira rezando sem pecado e sem saudade

Esqueceu aquele amor que era pura falsidade 

Curou o seu coração, é irmã de caridade.

A Ir. Isaldete reagiu de maneira diferente, apesar dos questionamentos: “O que vai ser da minha vida? Por que eu tinha que nascer ‘pobre, preta e feia’? Por que Deus me deu uma vida tão sofrida?”, não ficou magoada, não abandonou o que estava fazendo na comunidade, mas como Maria, guardou todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2,19). Por isso, mesmo ficando um pouco triste, não perdeu a esperança, não se amargurou e ficou na expectativa de um momento favorável. Algo que gostava de fazer era contemplar o pôr-do-sol porque sentia paz interior, segurança e confiança.

 

A ENTRADA NO CONVENTO

 

Era o dia 05 de janeiro de 1995 quando chegou no Convento do Colégio Santa Clara em Santarém, na companhia do Pe. Patrícião do Verbo Divino. Ela levou sua rede porque não havia mais vaga nos beliches. A Ir. Anunciada, responsável pelo grupo de candidatas, não estava. Tinha ido fazer compras na feira. Isaldete estava com aqueles sentimentos característicos de medo e insegurança de quem chega num lugar desconhecido: será que vão me receber bem? Para combater o medo ela se recordava dos dois conselhos que a Ir. Amélia lhe havia dado: “Minha filha, faça tudo que as irmãs lhe pedirem, faça logo amizade com as outras candidatas e você irá longe!”. Por isso logo se enturmou com as outras candidatas e foi ajudar descascar macaxeira. Suas angústias e inquietações podem ser muito bem expressas na oração do salmo: “Quem me dera ter asas de pomba e voar para achar um descanso! Fugiria, então, para longe, e me iria esconder no deserto” (Sl 54,7-8). Nisso chegou a irmã. Quando a Isaldete viu a freira, seu coração disparou, seu rosto ficou mais branco do que a neve e só pensou: “o que esta irmã vai me dizer? Será que serei bem recebida?” A irmã se aproximou e lhe perguntou: “Você é a candidata que veio de Trairão?” A resposta foi um sim baixo, meio engasgado e marcado pela insegurança. A irmã Anunciada então lhe disse as palavras mais doces que ela poderia ouvir naquele momento: “Isaldete, seja bem-vinda entre nósSinta-se em casa!” Ela sentiu um alívio imediato, sua cor voltou ao normal, deu aquela respirada funda como que querendo encher todo o seu ser da alegria que estava sentindo. Em seu coração agradeceu a Deus: “Senhor, muito obrigada! Fui bem-recebida! Obrigada, Senhor!

Em Santarém ficou até concluir o Ensino Fundamental e o Médio. Suas colegas, uma a uma foram saindo e voltando para seus familiares. Somente a Isaldete perseverou. Em 1999 entrou no aspirantado em Monte Alegre.

 

O FILME DA VIDA

 

Antes de iniciar a nova etapa de formação, ela repassou na memória muitas vezes, a sua história para poder se situar melhor em sua opção de vida e tomar a decisão final. Fazia verdadeiras viagens pelo seu passado e história. Isso a ajudou a não perder suas raízes

Recordou que nasceu no Maranhão, mais especificamente no município de Grajaúdia 27 de abril de 1972. Era meio-dia quando uma bela menina deu o seu primeiro choro e produziu uma grande alegria ao casal Ciríaco Ribeiro da Silva e Maria de Jesus Ferreira de Almeida. Mas a alegria maior foi da avó materna, que pela quinta vez esperava o nascimento de uma neta e viu concretizada sua esperança. Até parecia a profetisa Ana ao tomar o menino Jesus nos braços quando foi apresentado no templo (Lc 2, 36-38).

Dona Izabel havia pedido à filha Maria e ao genro Ciríaco que se nascesse uma menina, ela gostaria de criar como filha para que quando estivesse na velhice pudesse ser cuidada por essa “filha”. O casal, após longas conversas, reflexões e orações, chegou à conclusão, com o coração partido, que deixaria a filha ser criada pela avó.

Naquela época o ultrassom ainda não tinha chegado em muitas regiões do interior do Maranhão. Por isso só descobriam o sexo da criança na hora em que nascia. Naquele dia, na hora em que o sol brilhava intensamente, viram que a tão esperada criança recém-nascida era a sonhada menina.

A futura freira “preta, pobre, feia” foi batizada dia 25 de maio do mesmo ano e aos 11 meses, quando desmamou, foi levada para a casa da avó. Cresceu chamando a mãe de mãe e a avó, de mãezinha.

Ainda bem pequena era levada para o roçado pela avó, que a deixava debaixo de uma árvore enquanto trabalhava. Na medida em que foi crescendo, queria ajudar sua mãezinha. Por isso pegou o facão e começou bater num coco babaçu. O resultado foi que em vez de quebrar o coco, acabou fazendo um corte em sua mão. Sua mãezinha amarrou um pedaço de pano na mão cobrindo o ferimento e disse que antes dela casar, iria sarar. Isaldete gostava de colher algodão, porque não tinha perigo de se ferir. Ela guarda boas lembranças daquele tempo em que tinha uma vida bem simples e vivia com alegria, mesmo chegando cansada após um extenuante dia no sol. Foi ensinada que antes de dormir devia agradecer a Deus e pedir a bênção aos mais velhos. Além de catar algodão, suas diversões eram pescar e armar arapucas para pegar principalmente nambus e rolinhas.

Quando a Isaldete completou cinco anos, sua mãe faleceudeixando sete filhos, o mais novo com apenas um aninho. E a mãezinha, que já cuidava da Isaldete, passou a ajudar na educação de seus irmãos, mesmo não morando na mesma casa. Assumiu também a criação seu irmão menor, Elisvam, que estava com um ano de idade.

O que não faltava em sua casa era fé e prática do catolicismo. Está ainda muito forte em sua memória, quando, ainda pequena, com os passos lentos, segurava na saia da mãezinha indo participar das celebrações na comunidade, aos domingos. Isso era sagrado!

Aos 7 anos acompanhou a família, que, na esperança de dias melhores e de encontrar a “terra prometida”, migrou para o Pará, estabelecendo-se no município de Trairão, num lugar muito inóspito e sem escola. A vida era trabalhar, trabalhar e trabalhar. O ritmo só mudava aos domingos porque iam participar das celebrações na comunidade. Escutar a Palavra de Deus, rezar e se encontrar na comunidade era o que lhes dava força, alento e esperança por dias melhores.

Ela só pôde começar a frequentar uma escola aos 12-13 anos. A escola funcionava na igrejinha do povoado Vinte Dois, conhecido como Nova Esperança. Três anos mais tarde mudaram para uma estrada vicinal e ali não havia escola. Aos 17 anos cursou a 4ª série. As aulas eram num barraco coberto de palha e sem paredes. Não havia um quadro-negro nem cadeiras. Os alunos se sentavam em tamboretes de madeiras. Era uma professora para todas as séries. As crianças que ainda não sabiam escrever ficavam junto com as já alfabetizadas. A Isaldete, quando terminava suas lições, ajudava a professora nas tarefas dos demais alunos. Muitas crianças tinham que atravessar grotas, lamas e passar por cima de pinguelas para ir à escola, mas para elas era uma verdadeira festa, porque assim não precisavam ir trabalhar na roça.

Nesse mesmo tempo, ela começou a se preparar para a Primeira Eucaristia. Todos os sábados andava por volta de 11 km para participar da catequese. A catequista era dona Gracinha. Enfim, chegou o grande dia para receber Jesus na Eucaristia. Sentiu um frio na barriga, cresceu a curiosidade de como seria receber Jesus pela primeira vez e o que iria sentir. O padre José Ferreira chegou, atendeu as confissões e em seguida celebrou a santa Missa. Todos estavam vestidos de branco como sinal de pureza. O coração da Isaldete quase explodiu de tanta felicidade no momento em que recebeu Jesus. Ela recorda com nitidez a gratidão que sentia pela catequista, que lhe deu um cartãozinho escrito: “Isaldete, você mesma, seja firme em Jesus Cristo”.

Depois, as 7 famílias, que moravam naquele lugarejo, construíram uma pequena capela dedicada a São José Operário. Isso motivou a Isaldete a ajudar na comunidade. Com incentivo dos familiares e por saber ler, ela se tornou catequista e ministra da palavra. Para se preparar para as liturgias, ouvia as missas pela Rádio Nacional, pegava a sua Bíblia e ia para debaixo das árvores e lia bem alto, até sentir-se segura.

Repassou na memória muitas vezes a Semana Catequética, quando descobriu o chamado de Deus. Foi na comunidade Cristo Rei no Itapacurazinho. Durante aquela semana, para sua surpresa, foi apresentada a uma jovem de nome Rosely que estava indo para o convento. Nesse momento a Isaldete foi arrebatada por uma radiante alegria e descobriu que poderia realizar seu sonho de se dedicar em tempo integral pelo Reino, não sendo uma “padra” e sim uma irmã religiosa.

Só Deus sabe quantas vezes veio à tona a lembrança de sua mãezinha com a voz trêmula lhe dizendo: “Minha filha, não vão lhe aceitar não, porque você é preta, pobre e feia”. E pensava: “é, minha mãezinha se enganou. Eu apesar de preta, pobre e feia fui aceita porque devo ser bonita pra Deus”, e dava boas risadas – continua dando gargalhadas até hoje quando comenta o fato.

 

DECIDINDO A VIDA

 

Repassar muitas vezes o seu passado ou filmes de sua vida só reforçou sua decisão de seguir em frente e ao mesmo tempo impediu que ela esquecesse suas raízes, ou seja, sua origem simples, seus familiares e sua experiência de fé em casa e na comunidade. Porém, punha também em evidência algo que a perturbava: sua mãezinha. Sim, a sua mãezinha, aquela que a tinha criado, a fim de que na sua velhice pudesse estar amparada. Era um verdadeiro dilema: de um lado o dever de gratidão e de outro as palavras de Jesus:Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai e anuncia o Reino de Deus” e “Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus” (Lc 9, 60.62).

Certo dia resolveu escrever uma carta para sua mãezinha e lhe expôs seu dilema: continuar na vida religiosa ou ir cuidar da mãezinha de acordo com aquilo que tinha sido planejado desde antes de seu nascimento. Sua Mãezinha entendeu bem a situação e suscintamente respondeu: “Minha filha, eu já tracei o meu caminho, agora siga o seu”. E assim, Isaldete ficou despreocupada e sem remorso para seguir sua vocação.

Após o aspirantado em Monte Alegre, em 2000 fez um ano de postulando em Quixadá, Ceará. Em seguida fez o noviciado em Fortaleza, CE, e fez seus primeiros votos, dia 2 de fevereiro de 2003, na Igreja Matriz Jesus, Maria e José da capital cearense.

Sua primeira transferência foi para Santarém e no ano seguinte para Belém. Como era uma irmã disponível e livre para aceitar o que viesse, em 2005, foi enviada para a missão Indígena, na Prelazia de Itaituba, em Jacareacanga. Em 2007, nova transferência para a comunidade São José de Santarém.

 

EXPERIÊNCIA NA ÁFRICA

 

Em 2008 teve uma experiência única: foi para a Namíbia, África, participar do programa de formação em comum com irmãs de vários países. Do Brasil foram enviadas a Ir. Isaldete e a Ir. Lucimar da Unidade da Santa Cruz de Salvador. Era um programa formativo organizado pelo Governo Geral de sua Congregação. Foi com a cara e a coragem porque não sabia inglês, aliás, a única coisa que sabia era "I am Hungry" (“eu estou com fome”). As duas brasileiras foram recebidas com muita alegria, o que fez com que de imediato se sentissem em casa, mesmo não falando a língua. Os rituais e as celebrações tocavam profundamente no coração da Ir. Isaldete. Seria pelo fato de ela ter raízes africanas? A alegria e o acolhimento das pessoas em geral também ajudaram para que aqueles dois anos se tornassem um tempo de profunda comunhão com Deus.

Ela ainda estava na África quando seu pai faleceu. Recebeu a notícia quase um mês depois, por carta enviada pelo seu irmão Cláudio. Foi uma experiência muito forte. Certamente ela esperava que fosse uma carta com notícias boas, como a carta que os apóstolos e anciãos enviaram através de Judas Bársabas e Silas para a comunidade de Antioquia e que a sua leitura causou alegria, por causa do estímulo que trazia (Cf. At 15,22-31). Ela deixou para ler a carta após a janta. Ao mesmo tempo em que estava na expectativa de boas notícias, tinha no fundo do coração aquela preocupação causada pela acentuada sensibilidade que toda mulher tem de antever alguma notícia triste. Abriu a carta, leu e não conteve as lágrimas. Passou a noite em claro, chorando, sozinha, na solidão do seu quarto. Estava longe da família, longe da pátria, sem falar bem a língua, não tendo com quem desabafar e sentindo o vazio da certeza de que nunca mais veria seu pai. Pela manhã pensou em não ir à oração para que as coirmãs não vissem seus olhos inchados, mas resolveu ir, porque pensou: é lá que vou encontrar força! Chegou com um pouco de atraso, mas justamente no momento em que a irmã iria começar a ler o evangelho do dia, cujas palavras eram: Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai e anuncia o Reino de Deus” (Lc 9, 60). Seu coração se abriu e começou a agradecer a Deus pelo tempo que teve com seu pai, que já estava junto de Deus. Também tomou consciência de que deveria continuar o seu caminho sem olhar para trás. Além disso, ela tinha visto que na África, o dia que a pessoa morre é um dia de festa. O sepultamento tem todo um ritual próprio que leva a se ver o sentido da morte não como o fim e sim o começo de uma nova vida em Deus.

Marcante e gratificante pra ela foram as visitas às aldeias e às tribos. Ali são falados mais de 40 dialetos. Em cada visita se sentia feliz pelo contato direto com aquele povo simples, pobre e muito sofrido, porém  extremamente acolhedor. A comunicação se dava através de gestos e sorrisos, que era melhor do que se soubesse a língua, de acordo com sua opinião.

 

DE VOLTA AO BRASIL

 

Ao regressar para o Brasil, chegou decidida a se consagrar totalmente a Deus, por isso fez seus votos perpétuos, no dia 25 de Julho de 2010, na Igreja Nossa Senhora de Lourdes, em Santarém. A celebração foi presidida por Dom Esmeraldo Barreto de Farias e concelebrada pelos padres Patrícião e Patricinho, cujo testemunho de vida missionária dos dois foi de fundamental importância para que ela sentisse o chamado para a vida religiosa.

Após seus votos perpétuos voltou para a missão Indígena, em Jacareacanga. Em 2013 foi transferida para Quixadá para estudar História na Universidade Estadual do Ceará. Concluiu a graduação em 2017. Em seguida foi transferida para Manaus e um ano depois para a Missão São Francisco no Rio Cururu. Passou a pandemia da Covid-19 entre os indígenas Munduruku, sendo ali uma presença de apoio e esperança. Seu testemunho despertou a vocação de quatro meninas-adolescentes indígenas para a vida religiosa. Semanalmente fez encontros com elas e deu-lhes formação. Oxalá elas perseverem e se tornem mulheres consagradas para trabalharem entre os próprios Munduruku. Se tal acontecer, darão uma boa contribuição para que a Igreja tenha um rosto cada vez mais amazônico nas várias realidades.

Em 2021 foi transferida para coordenar a comunidade Santa Isabel, que é uma comunidade de irmãs idosas em Fortaleza. Ali continua esbanjando simpatia, alegria e dando um testemunho de verdadeira discípula missionária, não se importando de ter sido chamada de “preta, pobre e feia” ou ser chamada carinhosamente por alguns de “nega véia”. Que Santa Dulce dos Pobres olhe por ela e interceda para que a Isaldete persevere até o fim, sem olhar para trás!

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

Bispo da Prelazia de Itaituba



[1]A Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, fundada em 05 de dezembro de 1910, por franciscanos alemães, com a colaboração de Irmãs contemplativas brasileiras. Sendo a segunda congregação nascida na Amazônia, é hoje uma congregação internacional, com presença em quatro Continentes: Europa, África, Ásia, América do Norte e do Sul. Tem uma história de amor, de dedicação, de ideal missionário, marcada por grandes sacrifícios. Esta Congregação já tem uma santa canonizada: Ir. Dulce dos Pobre. <http://nossosantaclara.com.br/a-congregacao/>

sábado, 1 de maio de 2021

O PULO DO GATO


O PULO DO GATO

Faz muito tempo, quando os bichos ainda falavam, que esta história aconteceu.

     O Gato era famoso entre os animais pela sua agilidade, e um certo dia, estando à beira de um rio para beber água, lá foi encontrá-lo a Onça.

– Bom dia, mestre Gato; como vai você?

– Vou bem, obrigado, comadre Onça; e você?

– Assim, assim, – disse ela. – Ando tão triste ultimamente.

– Triste por que, comadre? Será que eu posso ajudá-la?

– Mestre Gato, você é o único bicho que pode ajudar-me. Sinto-me assim porque ouço sempre falar da sua habilidade para pular, e eu não sou capaz de fazer o mesmo. Você não quer me ensinar, amigo Gato?

– Ora, comadre, é só esse o seu problema? Não se aborreça! Vou lhe ensinar, sim. Podemos começar já, quer?

– Claro que sim, disse a Onça muito satisfeita.

Começou então a mais estranha aula deste mundo: o Gato exibia todos os tipos de pulos que podia executar, e a aluna procurava imitá-lo da melhor maneira possível. Saltavam de um lado para outro, subiam às árvores e de lá pulavam para o chão, davam saltos de altura, de extensão, e o Gato mostrava que era de fato um mestre, mas a Onça não deixava de ser uma boa aluna; depois de algum tempo já estava pulando quase tão bem quanto o professor.

Aconteceu, porém, que com todo aquele exercício a Onça ficou com fome, e resolveu satisfazê-la da maneira mais simples: comer o Gato. Saltou sobre ele, disposta a devorá-lo, mas o Gato, com grande agilidade, saltou de banda, escapando assim de ser comido. A Onça, muito desapontada, lhe disse:

– Ora, Mestre Gato, este pulo você não me ensinou…

– Comadre Onça, – respondeu o Gato, muito esperto, – você não sabe que nem tudo aquilo que o professor aprendeu, ele ensina aos seus alunos?

E com esta última lição lá se foi embora o Gato, muito alegre e satisfeito, deixando a Onça a ver navios…

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