sexta-feira, 2 de junho de 2023

Salpicado de cruzes toscas e negras

  

Cemitério da Missão São Francisco - rio Cururu

Salpicado de cruzes toscas e negras

 

 

Ao ler o livro “Entre as Ninfeias” de João Marques de Carvalho (1866 — 1910), publicado no ano de 1896, em Buenos Aires, o conto “O cemitério da floresta” mexeu com meus sentimentos. As reminiscências e reflexões do autor levaram-me a um certo confrangimento interior e fizeram-me recordar de alguns cemitérios e de alguns conhecidos e amigos que já estão na eternidade.

Marques de Carvalho narra que estava num barco viajando pelo rio Amazonas. A súbitas avista a imagem de um cemitério que o impactou e o levou a algumas ponderações: “Cortada em rápido declive sobre a beira da água, em meio à floresta densa, abandonada de todos, uma clareira fazia-se abrupta e essa clareira era um cemitério, um pequeno campo santo solitário e melancólico, — simpático todavia, — salpicado de cruzes toscas e negras!

A expressão de que o cemitério era uma clareira “abandonada de todos”, produzira em mim a sensação de que era um cemitério abandonado e intensificou-se maior com o reforço: “De quem são aqueles despojos materiais ali inumados, longe dos centros de povoação, roubados ao conhecimento mundano, subtraídos à vaidade dos homens, entregues à terra com toda a simpleza das grandes devoluções pungentes, restituídos à obscuridade do nada para sempre, para sempre furtados à última recordação marmórea que lhes lembrasse o nome na derradeira falsidade dos epitáfios campanudos?"

Enquanto lia o conto, aflorou em minha memória um cemitério, situado à margem esquerda do rio Amazonas, abaixo de Manaus e da pequena vila Jatuarana. Fui lá pescar e avistei, na margem que desmoronava, um cemitério no meio da mata. Na ocasião senti grande angústia pelo estado de abandono daquele campo santo. Cruzes, sem nomes, inclinadas no barranco, que certamente na enchente seguinte cairiam. Aquelas covas desapareceriam para sempre. A memória daquelas pessoas se perderia. Constantemente aquela imagem me vem à mente.

Ao visitarmos qualquer cemitério, é normal encontrarmos túmulos bem cuidados com flores, coroas e sinais de que há pessoas que cuidam com esmero a última morada do ente querido. Mas também vemos covas e sepulcros bastante ou totalmente descuidados e sem sequer uma indicação de quem está ali. Esta realidade me faz recordar o livro bíblico do Eclesiástico. Diz o autor sagrado: “Vamos fazer o elogio dos homens famosos, nossos antepassados através das gerações. Outros não deixaram lembrança alguma, desaparecendo como se não tivessem existido. Viveram como se não tivessem vivido, e seus filhos também, depois deles. Mas estes, ao contrário, são homens de misericórdia; seus gestos de bondade não serão esquecidos. Eles permanecem com seus descendentes; seus próprios netos são a sua melhor herança. A descendência deles mantém-se fiel às alianças, e, graças a eles, também os seus filhos. Sua descendência permanece para sempre, e sua glória jamais se apagará” (Eclo 44,1.9-13).

O ser humano é o único animal que sepulta seus mortos de forma ritualizada. Alguns estudiosos afirmam que essa tradição remonta a no mínimo 130.000 anos, ou seja, ao tempo dos neandertais. Sei lá, mas é certo que “enterrar os mortos” é a 7ª obra de misericórdia. Só para refrescar a memória: “As obras de misericórdia são as ações caridosas pelas quais vamos em ajuda do nosso próximo, nas suas necessidades corporais e espirituais” (Catecismo da Igreja Católica, 2447).

 As 7 Obras de misericórdia corporais são:

1) Dar de comer a quem tem fome; 

2) Dar de beber a quem tem sede; 

3) Dar pousada aos peregrinos; 

4) Vestir os nus; 

5) Visitar os enfermos; 

6) Visitar os presos 

7) Enterrar os mortos.   

As 7 Obras de misericórdia espirituais são:  

1) Ensinar os ignorantes;  

2) Dar bom conselho;  

3) Corrigir os que erram;  

4) Perdoar as injúrias;  

5) Consolar os tristes;  

6) Sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; 

7) Rezar a Deus por vivos e defuntos.

Já passei por muitas aldeias indígenas e só vi dois cemitérios: um na Missão São Francisco do rio Cururu e outro na aldeia Fortaleza no rio Andirá. Os dois são totalmente diferentes e expressam maneiras até opostas de ver o sepultamento. O cemitério da Missão (foto acima) é completamente limpo; ali não há árvores ou arbustos nem grama. Só há os montes de terra indicando as covas e cruzes com os nomes dos mortos – a maioria com as datas de nascimento e morte. Em torno de cada cova, há como que uma cerca de pedras demarcando-a. Não há um túmulo sequer. Todos foram sepultados diretamente na terra, inclusive um irmão franciscano e duas freiras. São os Munduruku que sepultam seus mortos naquele cemitério.

Na aldeia Fortaleza do rio Andirá, os Sateré-Maué sepultam seus mortos num cemitério situado contíguo à aldeia na mata. Nem se percebe que é um cemitério, porque não se vê qualquer cova, nem cruzes ou nomes. No entanto, disseram-me que colocam uma cruz de madeira quando enterram alguém, mas depois que esta apodrece, não a repõem. Apesar de passar do lado algumas vezes, só fiquei sabendo que era ali o cemitério, porque perguntei. Não perguntei se eles costumam fazer alguma oração ou alguma cerimônia religiosa para o enterro de um membro da aldeia. Na Missão certamente são feitas as Exéquias oficiais da Igreja Católica, uma vez que lá moram padres e irmãs e todos são batizados. 

Tenho conhecimento da existência de dois cemitérios de ribeirinhos no rio Tapajós. Saindo de Itaituba e subindo o rio Tapajós, em duas vilas, que se despovoaram, há dois cemitérios abandonados. O primeiro é o cemitério da antiga vila Barreirinha, situada uns 30 km de Itaituba – via rodovia Transamazônica, e o segundo no porto Buburé, 70 km de Itaituba. Não conheço nenhum dos dois. Só ouvi falar que estão abandonados. Na Barreirinha fui uma vez, mas à noite e não deu para observá-lo. Com a instalação de uma fábrica de cimento, os moradores foram transferidos para uma nova vila em outro local ou simplesmente saíram de lá. Apenas restam a capela e o cemitério. Na capela é celebrada anualmente uma missa. O porto Buburé teve a sua importância no passado, mas atualmente só é usado pela população ribeirinha, que também diminuiu muito, para ir a algumas balsas-draga de garimpo e pelos indígenas Munduruku de algumas aldeias que estão acima do porto. Também pescadores, como eu, iniciam ali sua aventura para evitarem a passagem pelas perigosas cachoeiras de São Luís. Sei que há um cemitério e que está abandonado, sendo que a mata já tomou conta. Esses dois cemitérios não correm o risco de desaparecerem por desbarrancamentos como o mencionado acima, visto que estão numa parte alta e um pouco distante da margem do rio.

No cemitério de Nova Londrina, onde nasci, tenho meu pai e meu irmão mais velho sepultados. Sempre que vou ao túmulo deles, faço um giro pelo cemitério olhando os sepulcros. Bate uma grande saudade que parece ficar entrelaçada com os ramos de cada árvore. Sempre me impressiono com o número de amigos e conhecidos que já estão com Deus. Por crer na ressurreição, ao visitar um cemitério sempre faço uma oração por aqueles que estão ali sepultados. O fundamento para rezar pelos mortos está no segundo livro dos Macabeus. Este livro sagrado, narra que no dia seguinte à batalha contra Górgias, governador da Iduméia, Judas Macabeu determinou “que seus homens recolhessem os corpos daqueles que tinham morrido na batalha, a fim de sepultá-los ao lado dos parentes, nos túmulos de seus antepassados”. Então fizeram uma coleta e a enviaram a Jerusalém para que fosse oferecido um sacrifício pelos pecados dos soldados mortos. Para justificar a coleta e a oração pelos mortos, o livro bíblico sentencia: “Ele agiu com grande retidão e nobreza, pensando na ressurreição. Se não tivesse esperança na ressurreição dos que tinham morrido na batalha, seria coisa inútil e tola rezar pelos mortos. Mas, considerando que existe uma bela recompensa guardada para aqueles que são fiéis até a morte, então esse é um pensamento santo e piedoso. Por isso, mandou oferecer um sacrifício pelo pecado dos que tinham morrido, para que fossem libertados do pecado” (2Mac 12,43-45).

Li que nas regiões elevadas do Himalaia, há o costume de se fazer o chamado “funeral nos céus”. Trata-se de esquartejar o corpo do falecido e dar os pedaços aos abutres. É a solução que encontraram para dar um destino aos corpos, uma vez que o chão rochoso, cheio de pedras e congelado dificulta fazer a cova e a cremação seria muito difícil, devido à ausência de árvores que poderiam servir como lenha.

Esta prática, por mais repugnante que possa parecer, também é uma medida para impedir que as doenças se espalhem. Além disso, a religião budista, ali professada, ensina que a alma já migrou para outro domínio e o corpo é apenas um invólucro vazio. Os budistas veem isso como um ato sagrado, que sustentará a vida de outro ser vivo.

Para mim, ao se falar em cemitérios, é impossível não lembrar das catacumbas em Roma, onde os cristãos enterravam seus mortos. Há em torno de 60 catacumbas mortuárias em Roma e arredores. Visitei três catacumbas várias vezes. A que mais visitei foi a de São Calisto. Mas também as de São Sebastião e Domitila. As três estão muito próximas uma da outra na via Ápia. A maior delas é a de São Calisto e ali se encontram os túmulos de diversos papas dos séculos II ao IV. Foi abandonada durante o século IX e redescoberta em 1854.

Em certa ocasião, há mais de 50 anos, eu estava numa kombi com escoteiros, tendo como motorista um padre alemão chamado Frei Jerônimo. Ele sempre foi muito cauteloso na condução de um veículo. Entramos numa rua preferencial. Ao chegarmos no primeiro cruzamento, ele diminuiu a velocidade a ponto de quase parar. Olhou para um lado e outro, como não viu nenhum carro se aproximando, seguiu em frente. Um dos escoteiros disse: 

- “Frei, nós estamos numa rua principal e temos a preferência!” 

- “Os cemitérios estão cheios de gente que tinha preferência no trânsito!”, respondeu o frei, sem nem olhar para trás.

Pensando bem, ao constatar que no trânsito urbano e nas estradas há tantos motoristas “barbeiros” ou irresponsáveis, é bom sempre lembrar-se o provérbio popular: “Cautela e caldo de galinha não fazem mal pra ninguém!”, porque senão o nosso destino será um cemitério mais cedo do que se espera.

Em julho de 1981 me encontrava em Princesa Isabel, PB, e fui fazer campanha vocacional numa capela com um grupo de carmelitas. Após a missa, fomos almoçar numa casa bem próxima ao cemitério. Antes do almoço alguém, olhando para o cemitério, disse: 

-“Esta é a primeira vez que vejo um cemitório!

Logo surgiu a pergunta: 

- “Que negócio esse, um cemitório?” 

O outro respondeu: 

- “É um mictório junto a um cemitério!” 

Caímos na gargalhada. É, dá pra fazer humor com cemitério sem ser tétrico ou pavoroso!

Rodou nas redes sociais um vídeo com uma canção cantada por Elton John, em inglês, mas com a tradução escrita em português. Algumas pessoas, que sabem a língua de William Shakespeare, me disseram que a tradução não correspondia às palavras cantadas. O texto da “tradução” me agradou e me levou a refletir sobre o comportamento de muitas pessoas diante de um morto e sobre o que fazem quando vão ao cemitério: levam flores e coroas. Isso serve para manifestar o sentimento que se tem em relação ao falecido. O texto fala por si só, sem necessidade de comentários: 

Você já percebeu o quanto o ser humano é estranho?

Pare para pensar! O ser humano briga com os vivos,

Mas leva flores para os mortos.

Lança os vivos ao nada,

Mas pede um lugar aos mortos.

Se afasta das pessoas quando vivas,

Mas quando essas pessoas morrem,

Se agarram desesperados nas lembranças

dos momentos que passaram ao lado delas.

Pois é, o ser humano é estranho.

O ser humano fica anos sem conversar com um vivo,

Mas se desculpa e faz até homenagem quando este morre.

Não tem tempo pra visitar quando a pessoa está viva,

Mas tem tempo até o dia todo 

Para ir e ficar no funeral desta pessoa.

Critica, fala mal, ofende quando a pessoa está viva,

Mas a santifica quando ela morre.

Não liga, não abraça, não se importa com os vivos,

Mas se autoflagela quando estes morrem.

Aos olhos cegos dos homens, 

O valor do ser humano está na sua morte e não na sua vida.

E sabe qual é a explicação de tudo isso?

Por que os mortos recebem mais atenção, carinho,

Passam a ser notados e recebem flores?

Porque o remorso é e sempre foi mais forte que a gratidão!

É bom pensarmos sobre isso enquanto estamos vivos...

A vida é um sopro!

Hoje estamos vivos, amanhã podemos não estar mais...

Então valorize quem você ama.

Não deixe para amanhã o que você pode fazer hoje!

Ame, perdoe, seja feliz ao lado da sua família, dos seus amigos...

Pare de criar confusão por coisas tão pequenas!

Lembre-se que a vida é um sopro!

Antes de homenagear quem já morreu,

Aprenda a valorizar quem está ainda vivo,

Porque depois que a pessoa vai embora

Até os defeitos viram saudades...

Lembre-se o maior presente que você pode dar a alguém 

É o seu tempo, a sua atenção, o seu carinho, o seu interesse

Faça isso antes que seja tarde demais....”

Vamos reverenciar os nossos mortos, mas muito mais vamos cultivar com zelo o relacionamento com os vivos, visto que Jesus Cristo, nosso Salvador, sentenciou: “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros. Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,34-35)

 

+ Wilmar Santin, O.Carm.

 

 

 

sábado, 1 de abril de 2023

UMA PESCARIA DIVERTIDA NO RIO CURUÁ


 

UMA PESCARIA DIVERTIDA NO RIO CURUÁ

 

Quem já pescou sabe o quanto é maravilhoso ir à beira de um rio, acampar, pescar, dormir em rede ou no chão, fritar peixe, conversar, contar causos e mentiras... Cansativo é, mas restaura as forças, elimina o estresse e reconforta o ânimo! Cada pescaria tem um encanto próprio que motiva o pescador a querer repetir a experiência! O mágico é que uma pescaria nunca é igual às outras! Cada uma tem um “tchã especial, como esta que vou contar. 

A pescaria divertida aconteceu no rio Curuá, no distrito de Cachoeira da Serra, município de Altamira. Sua nascente fica na Serra do Cachimbo e deságua no rio Iriri, que por sua vez é afluente do rio Xingu, tendo uns 450 km de extensão. Onde fui pescar, perto da cabeceira, tem uma largura média entre 20 e 30 m, portanto não é um grande rio para a Amazônia, porém, é bastante piscoso.

Desde novembro do ano passado tínhamos programado a pescaria. Meus amigos Chico, Áureo e Pipoca, que moram em Cachoeira da Serra, estavam vibrando e me provocando com fotos de outras pescarias. Estava combinado para sairmos às 7h da manhã, mas surgiram imprevistos e só nos foi possível sair às 10h30. O Chico estava impaciente e reclamando do Áureo que não chegava. Eu só dizia: “O tempo é nosso! O nosso objetivo é pescar e não nos estressar! A hora que formos está bom!” Ele se acalmou e não deu bronca quando o companheiro chegou.

O rio estava cheio. Faltava menos de meio metro para o nível do Curuá atingir a ponte. Como as chuvas aumentaram nos dias sucessivos, aconteceu a chamada “enchente de São José” e a água passou por cima da ponte. Segundo o Pipoca, todos os anos nos dias que antecedem a festa de São José, chove muito e provoca uma grande inundação. Neste ano sou testemunha deste fenômeno climático.

Levamos duas voadeiras. Logo abaixo da ponte há um bom porto para se colocar as embarcações no rio. O Áureo tinha adquirido muçum e minhoca para isca, em Cuiabá, porém, esqueceu em casa. Por sorte, o Pipoca é bem prevenido e levou uns peixes pegos na pescaria anterior. Também levou minhocas. Assim tínhamos iscas para pescar.

Fiquei na voadeira com o Pipoca de piloto. Na outra ficaram o Áureo de piloto e o Chico. Fomos os primeiros a sair. Descemos até chegar onde há uma balsa, que serve de apoio para pescadores. É muito bem feita. O assoalho é ótimo. Tem uma mesa, pia, uma churrasqueira e cadeiras. O Pipoca preparou o almoço assando carne de porco e fazendo uma salada de tomate e cebola.

Durante o almoço, o cuiabano Pipoca, que é um falador inveterado, sem embatucar contou-nos uma facécia do tempo em que ele pescava no rio Cuiabá. Era a história de uma traíra guaxa. Eu já tinha ouvido falar de bezerro guaxo, ou seja, de terneiro que não tem mãe e é amamentado por outra vaca ou na mamadeira, mas de traíra guaxa... foi a primeira vez! Disse ele que em certa ocasião pescou uma traíra, com anzol nº 16 - conhecido como mosquitinho, por ser o menor de todos os anzóis. Acrescentou que não tinha colocado castor. Mesmo sendo uma traíra muito pequena - na verdade um filhote, ele a colocou no bornal. Quando chegou em casa, viu que ela ainda estava viva. Percebeu que era uma traíra guaxa e que estava desnutrida. Por isso deu-lhe um pouco de leite. Viu que ela bebeu e gostou. Daquele dia em diante passou a alimentar a trairinha com leite e a deixava no quintal junto com as galinhas. Até brincavam de esconde-esconde. Ela foi crescendo e se tornou uma traíra adulta. Então começaram os problemas: a traíra passou a comer os ovos das galinhas e depois a devorar os pintinhos. Pra complicar mais ainda, os vizinhos foram ao IBAMA e fizeram uma denúncia de que ele estava criando um peixe fora d’água. Ele, que não é bobo e não queria levar uma multa, resolveu devolvê-la ao seu habitat natural. Chamou todos os seus amigos pescadores, vizinhos, colegas de escola para assistir à devolução da traíra ao rio Cuiabá. Até banda de música ele contratou. Com muita festa e barulho rumou para o rio tendo a traíra nas mãos e lágrimas nos olhos, afinal, após meses dando de mamar pra bichinha, ele tinha se apegado demais a ela. A traíra tinha se tornado um verdadeiro xerimbabo, um bichinho de estimação. Ao chegar à margem do rio, enxugou as lágrimas, deu um beijo na testa da traíra e a soltou lentamente à flor da água. Ela foi afundando, afundando até desaparecer. Todos bateram palmas e gritaram: “Viva a traíra guaxa!!! Viva o Pipoca!!!”. Mas eis que de repente todos ficaram em silêncio e uma tristeza geral caiu sobre eles: a traíra estava boiando morta! Tinha morrido afogada!!!

Eu não aguentei e gargalhando disse: “O Pipoca é realmente criativo em contar gazopas!”

Depois de almoçar e ouvir esta e outras caraminholas e pérolas lendárias contadas por pescadores, saímos para pescar.

Como o rio estava bastante cheio, a água entrava na mata ciliar formando o chamado igapó. É para lá que os peixes vão, porque ali há comida, principalmente frutas silvestres e insetos. No leito e nas beiradas do rio havia muita correnteza e nada de peixe. Fomos mudando de lugar e nada de beliscar. Nem piranha atacava a isca. Tentávamos pegar mandi com a minhoca e também nada de beliscar.

Se o rio não estava para peixe, a natureza estava exuberante. Era maravilhoso contemplar as árvores e a vegetação. No céu azul brilhava o astro-rei com todo o seu esplendor, as andorinhas davam um espetáculo todo particular com suas revoadas. Pequenas borboletas de asas amarelas volitavam de uma margem para a outra. Ouvia-se o rumor doce e cantante do repuxo das correntezas. Mas peixe: nada, nada, nada! Parecia que estavam de greve!

Como nem beliscavam, começamos a conversar sobre quem era o "panema" que estava prejudicando a pescaria. Eu logo disse: “Deve ser você, Pipoca, porque no mês passado você pescou aqui no Curuá junto com o Pe. Melquisedeque, que é o maior panema entre os membros do clero do Brasil e quiçá até do mundo. E ele passou a “panemice” pra você”. O Pipoca logo protestou: “Eu não, ele foi com o Chico!” Um ficou empurrando para o outro. O Áureo e eu só dávamos risada. 

Infelizmente não dá pra negar: o Pe. Melquisedeque é panema desde que nasceu. Acho até que ele é um dos maiores panemas que nasceram entre os descendentes de Adão e Eva. Ele até gosta de pescar, mas nunca consegue pegar um peixe sequer. Nem mandi, que se fisga sozinho, ele consegue fisgar. Entretanto, na pescaria anterior ele conseguiu pegar um bonito exemplar de surubim. Eu vi a foto. Confesso que duvidei que tinha sido ele quem tinha fisgado. O Pipoca me garantiu que foi ele mesmo. Fiz de conta que acreditava. Seja como for, parece que acabou a “panemice” dele. Porém, se tal aconteceu, ele a passou para seu companheiro de pesca que estava no mesmo barco. Eu tinha entendido que ele estava na voadeira com o Pipoca, mas o Pipoca se defende dizendo que não. Nenhum dos dois quer ser o herdeiro da panemice. Mas, sempre que o Pe. Melquisedeque retorna para uma pescaria, há uma disputa sobre quem vai levá-lo na voadeira, porque ele é gente boa demais!, bonachão, de fala mansa e gostosas gargalhadas, principalmente quando é chamado de panema. Ele entende que é brincadeira e entra no clima com boas risadas.

Os indígenas Apiaká da aldeia Pontal lá do rio Juruema me disseram que para acabar com a panemice deve-se abraçar o tachizeiro por 10 minutos, deixando a terrível formiguinha tachi picar à vontade. Não há quem aguente suas picadas porque a dor é muito intensa, fica-se com a sensação de que está queimando. Já receitei para o Pe. Melquisedeque abraçar um tachizeiro – a árvore onde as tachis gostam de ficar – mas ele não tem coragem, prefere continuar panema.

Quando se está ali esperando o peixe beliscar, muitas recordações e pensamentos vêm à memória. Por exemplo: outras pescarias em que pegamos muitos tucunarés, cacharas, surubins, pirararas, trairões,  pescadas (corvinas) e piranhas. Mas também aparecem pensamentos espirituais e religiosos. Desta vez de repente veio à memória o salmo 64(65), principalmente a última estrofe:

“– As colinas se enfeitam de alegria, * 

e os campos, de rebanhos; 

– nossos vales se revestem de trigais: * 

tudo canta de alegria!”

Vi-me louvando a Deus pela criação. Senti que realmente “tudo cantava de alegria”. 

Pode até parecer coincidência, mas o salmo também menciona chuva – “Visitais a nossa terra com as chuvas, e transborda de fartura. Rios de Deus que vêm do céu derramam águas e preparais o nosso trigo” – e enquanto repassava na cabeça o versículo, pelas 16h30, o Pipoca – interrompendo minha contemplação – me disse: “Vai chover em poucos minutos!”. Eu nem tinha reparado que o céu estava abaçanado por nuvens cor de chumbo, que as nuvens escuras estavam ligeiras e vindo em nossa direção.

Ele começou a recolher os anzóis e me estimulou: “Rápido! Rápido! Recolha as linhas! A chuva vai ser torrencial! Nem vai dar tempo de chegarmos na balsa”.

Com as “traias” recolhidas, nos pusemos em movimento subindo o rio.  Nem tínhamos navegado 200 m e já começou a chover com a chuva engrossando logo em seguida. O Pipoca – sempre previdente - tinha levado dois guarda-sóis. Conseguimos nos proteger, no entanto, o Chico e o Áureo, que não foram previdentes, tomaram um banho sem tamanho.

Ainda chovia quando resolvemos ir até a balsa e esperar a chuva passar. Os dois “pintos molhados” estavam tremendo de frio. O Áureo disse: “Pena que não temos uma cachaça para ajudar a esquentar”. O Pipoca, que é previdente como as cinco virgens da parábola (Mt 25,1-13), tinha levado uma garrafinha com a danada. Ele é tão esperto que, para ninguém saber que ele leva cachaça, colocou-a numa garrafa plástica de meio litro comprada em Aparecida do Norte com a imagem de Nossa Senhora, simulando assim que é água benta. O Áureo foi o primeiro a tomar. Logo foi dizendo: “É muito fraca” e tomou o dobro para poder esquentar. Realmente havia evaporado muito do álcool. Mesmo assim eles puderam se esquentar e evitar a gripe.

Na balsa começamos a lamentar que não tínhamos pego nem um mandizinho sequer. Recordei o que aprendi com meu amigo José Bissone, de Curitiba: “Numa pescaria, peixe é um detalhe, detalhe importante mas um detalhe. O principal deve ser esfriar a cabeça, descansar a mente, desestressar, tomar uma cervejinha, conversar e contar vantagens de outras pescarias, etc.”

Ao pardejar, como não estava dando nada, resolvemos ir embora antes do previsto. Mas a certa altura da volta, o Pipoca me disse: “Vamos parar aqui porque vou pegar um trairão. Neste lugar até a minha mulher já pegou um trairão”. Confabulei com meus botões: “Mais uma bobeira do Pipoca. Só vamos perder tempo”. Mas para não contrariá-lo e com a esperança de que seria eu é que pegaria o trairão para poder contar vantagem, acabei anuindo. No entanto, foi ele quem pegou um, mas não um trairão e sim um peixe-pau, a saber, um enrosco, ou, engate – como dizem os ribeirinhos. Como não conseguiu tirar o peixe-pau d’água, teve que arrebentar a linha perdendo o anzol e a chumbada. Quem manda ser teimoso!

Ao retornarmos o Áureo ligou o som do carro e, por coincidência,  a primeira canção foi: “Pescaria no Mogi Guaçu” com Dino Franco e Mouraí[1] cantando. Aproveito para colocar a letra da música:

 

Fui fazer uma pescaria

Lá no rio Mogi Guaçu

Fiquei no rancho do Dida

Caboclo bom pra chuchu

 

Eu levei anzol de vara

Pra pegar piabauçu

O Xô preparou um cóvo

Só de taquara bambu

 

O Chicão encheu a cara

Com o Ocridão Barbaçu

E foram fazer a janta

Saiu tudo meio cru 

 

O Neto tava com fome

Foi aquele sururu

Sei dizer que nós não vimos

Nem o cheiro do tatu 

 

Perguntei pro Zé Cardoso

Se ali dava nhambu

Ele disse: - não é sempre

Mas às vezes canta um jacu

 

Então já me deu vontade

De matar esse jaburu

Mas o nosso tira-gosto

Foi rolinha com angu 

 

Eu fisguei um peixe grande

Bem maior que um jaú

Ele arrebentou o anzol

Da linhada do Dudu 

 

Peguemos de promombó

Muito lambari tambiú

Pescaria igual a essa

É só no Mogi Guaçu

 

É certo que foi uma pescaria baldada, mas rendeu uma boa história ou crônica. No entanto, depois de ouvir esta linda canção, acho que da próxima vez vou convidar meus amigos para irmos pescar no Mogi Guaçu. Com certeza, não será outra pescaria inusitada como esta!

 

Wilmar Santin, O.Carm.

Itaituba, 1º de abril de 2023.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Eu daria tudo que eu tivesse pra voltar aos dias de criança


 

 

 “Eu daria tudo que eu tivesse pra voltar aos dias de criança” (Ataulfo Alves)

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

 

Assim como o grande Ataulfo Alves, muitas vezes também tenho o desejo de voltar aos dias de criança. Porém, voltar aos dias de criança só seria possível acionando a memória, deixando-me guiar pelas asas da saudade ou num filme, como o “De volta para o futuro”. Como não tenho a capacidade de “voltar ao futuro”, vou voltar aos belos e inesquecíveis anos da minha infância e garimpar, no filão das recordações, algumas reminiscências dos melhores anos da vida - e tentar tanto quanto possível revivê-las no mundo mágico da imaginação. 

Deixando a poesia e os desejos de lado, é bom frisar que aquilo que vivemos não volta mais. Se tentarmos repetir as nossas experiências, poderemos nos frustrar, porque nunca serão iguais pelo simples fato de que nós não somos mais os mesmos. É como ensinou o filósofo pré-socrático, Heráclito de Éfeso: “Nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tampouco o homem!”.

Estamos sempre em contínua mudança. Cada dia nos tornamos pessoas novas e, apesar de não percebermos, já somos pessoas diferentes do que fomos no dia anterior. Aquilo que nos é agradável, nós queremos que se prolongue no tempo e que nunca termine. Outro dia, uma menina me disse que não queria crescer, queria ficar para sempre criança. Ela deve estar vivendo uma infância muito feliz e sabe que é feliz, mas vai crescer e deixará de ser criança, querendo ou não.

Machado de Assis publicou um conto com o título “A Segunda Vida”. Usou sua prodigiosa imaginação para descrever como poderia ser a vida de uma pessoa, se ela voltasse a nascer com a experiência que tinha quando morreu. Com a categoria que Deus lhe deu, narra a história de um homem que foi conversar com um padre, ou melhor, com um monsenhor. O homem começou contando que tinha morrido aos 68 anos, mas que foi reenviado “à terra para cumprir uma vida nova”. Ele só aceitou voltar com a condição de que devia nascer experiente. Segundo suas próprias palavras, sua nova vida estava sendo só aborrecimentos e frustrações:

— “Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Mamava pouco; chorava o menos que podia para não apanhar pancada. Comecei a andar tarde, por medo de cair, e daí me ficou uma tal ou qual fraqueza nas pernas. Correr e rolar, trepar nas árvores, saltar paredões, trocar murros, coisas tão úteis, nada disso fiz, por medo de contusão e sangue. Para falar com franqueza, tive uma infância aborrecida, e a escola não o foi menos. Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creio que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Palavra, foi um tempo de aborrecimento; e, comparando as cabeças quebradas de outro tempo com o tédio de hoje, antes as cabeças quebradas”.

Ao reler este conto, recordei uma maravilhosa experiência que tive em maio de 2012, no rio Tapajós, entre os indígenas Munduruku, na comemoração dos 100 anos da Missão São Francisco do rio Cururu. Foi organizado um mutirão de visitas missionárias às aldeias dos outrora “cortadores de cabeças” antes do encerramento das comemorações do centenário. Foram recrutados 35 missionários, entre padres, religiosos/as e leigos, e enviados dois a dois. Tive como companheiro, o meu amigo Jonas Pinheiro, de Curitiba. Visitamos as aldeias Katon, no rio Kabitutu, e Sai Cinzas, à margem esquerda do Tapajós. Depois seguimos até a Missão São Francisco, onde haveria as comemorações finais. Ao sairmos da aldeia Sai Cinzas pelas 7h da manhã, encontramos três jovens índias banhando-se no rio. Uma delas estava com uma criança nascida na semana anterior, “ensinando” a frágil criaturinha a nadar. Segurava-a nos braços e a embalava na água. Ela me pediu para dar uma bênção para o “anjinho” ainda tão tenro. Após abençoá-lo, perguntei se não era arriscado trazer a criança nesta idade para o rio. Disse-me que a criança tem que aprender a gostar do rio desde o dia do nascimento. Fiquei com aquilo na cabeça.

Uma hora mais tarde chegamos à aldeia Boca das Piranhas, situada à margem direita do Tapajós. Paramos para pegar dois missionários. Junto à barranca do rio, havia seis crianças brincando na água com uma alegria exuberante. Pelo tamanho, davam a impressão de que tinham entre 2 e 3 anos ou 4 no máximo. Pareciam pequenas lontras, tal a agilidade: subiam numa árvore, pulavam no rio, nadavam até o barranco, saíam e repetiam ininterruptamente, as mesmas ações rindo e gritando. Transmitiam uma felicidade contagiante. Um gaúcho diria: “Estão mais faceiras do que lambari em sanga!” A alegria e a felicidade daquelas crianças me deixaram impactado e renovado. A energia positiva, ali recebida, me ajudou a aguentar as mais de 9 horas de viagem na voadeira, rio acima.

Foram longas aquelas horas sob o sol, sentado, ou melhor, meio “acrocado”, porque o banco era baixo. Aos poucos foi dando uma dor nas costas, mas a imagem de felicidade daquelas crianças, tão vivazes, fez com que eu recordasse alguns fatos encantadores da minha infância, sobretudo de banhos e pescas no rio Tigre, em Nova Londrina, onde nasci.

Como era gostoso e tentador ir tomar banho no rio nos tempos de infância e adolescência. O pai e a mãe não nos deixavam ir, a não ser que um dos irmãos mais velhos fosse junto. Tinham receio de que nos afogássemos. Nós fugíamos e íamos. Se chegássemos em casa com o calção molhado: a surra era certa. E quantas vezes apanhei por causa disso!

Como na vida é possível dar um jeito em quase tudo, arrumamos um jeito de não chegar em casa com o calção molhado. Passamos a sair da água um pouco antes do anoitecer. Tirávamos o calção e o batíamos contra a parede onde estava a turbina, para sair o máximo possível de água. Assim dava tempo do calção secar até chegarmos em casa. Mas como nada é perfeito, a parte do elástico ficava molhada. Algumas vezes a mãe ou o pai percebia que o elástico estava molhado. Daí o chinelo comia solto nas nádegas e nas pernas. Era o costume da época!

Por falar em surra, quando penso nas que levei, constato que não ficou qualquer trauma ou problema psicológico. Lembro que apanhei muito, mas não lembro da dor em si das varadas ou chineladas. Não tenho qualquer revolta por causa das muitíssimas sovas que levei. E quando lembro, a minha reação é dar risada e dizer: “Eu merecia”. A mãe só dava tapas. Só acertava o primeiro, porque quando ia dar o segundo, já tínhamos fugido. E ela ficava dizendo: “Venha aqui que eu quero te bater”. Como éramos desobedientes e não queríamos apanhar, corríamos para longe. Ao voltarmos, a raiva da mãe já tinha passado. Por isso não batia mais.

Com o pai não adiantava correr, porque ele nos pegava quando voltávamos. As lapadas dele eram pesadas e prolongadas. Tinha um pé de marmelo no quintal e era dali que ele pegava a vara. Como aquela vara demorava para quebrar, se é que quebrava! Ele utilizava também seu chinelo de couro. Colocava a nossa cabeça entre suas pernas, ficávamos, consequentemente, curvados com o traseiro pra cima e pronto pra receber as chineladas. Como era doído!!! Muitíssimas vezes também usava a cinta. As pernas dançavam e saltavam querendo inutilmente escapar das cintadas.

O nosso castigo mais temido não era a surra, mas sim uma xícara de azeite de oliva, que o pai nos obrigava a tomar. Era da marca Gallo ou Carbonell. Como era ruim!!!! Eu preferia tomar cinco tundas do que uma xícara daquela coisa que custava a descer pela garganta e com seu gosto ficando por muito tempo na boca. Não virou trauma, mas sim um certo bloqueio psicológico, tanto é que até hoje me repugna e evito usá-lo na salada.

Mesmo com as surras e castigos, não desistíamos de ir ao rio tomar banho. O meu grande problema foi aprender a nadar. Não tive a mesma sorte das crianças Munduruku, que são levadas desde o dia do nascimento para serem banhadas no rio. Tive que aprender como os outros meninos aprendiam. O “pulo do gato”, o modo infalível para aprender a nadar era engolir um peixinho vivo. Sim, isso mesmo: engolir um lambarizinho vivo! A crença era de que ele iria nadar dentro do estômago e assim ensinava a criança a nadar. E por incrível que possa parecer, a artimanha funcionava muito bem. No meu tempo todos os meninos aprenderam a nadar engolindo pelo menos um peixinho vivo. Essa “técnica” funcionava como alavanca para fazer com que a criança perdesse o medo, que é o principal entrave para alguém aprender a nadar.

Eu custei a perder o medo. Por isso tive que engolir vários guarus. Um dia consegui pegar um lambari maiorzinho. O bichinho desceu fazendo cócegas na garganta. Me senti forte e sem medo. Entrei em águas mais profundas e comecei a nadar como um “cachorrinho”. Batendo as mãos e pés consegui chegar ao outro lado do rio. Que alegria e que sabor de vitória! Só quem passou por uma experiência semelhante entenderá essa sensação de superação.

Para nós era normal "matar aula" para ir tomar banho no rio. Se o pai ficasse sabendo, a coça era dupla: uma por matar aula e outra por ir ao rio, mas moleque não tem jeito! Sempre havia pessoas linguarudas para contar: “Vi teu filho tomando banho no rio durante o período das aulas”. É, em cidade pequena o controle social é grande!

Diz-se que a primeira pesca nunca se esquece, principalmente se consegue pegar seu primeiro peixe. Recordo perfeitamente a minha primeira vez: peguei dois peixes! Foi um atrás do outro. Meu irmão mais velho ia pescar e me levou junto. Eu devia ter uns 6 anos. Lembro-me que foi depois da Copa do Mundo de 1958. Está na minha memória o local onde chegamos: era para cima da indústria de bebidas do Hilário Zilio e havia árvores, portanto, não ficávamos expostos ao sol. Meu irmão se instalou no melhor poço e não me deixou pescar ali, visto que o poço era pequeno. O jeito foi arrumar um local para mim. Subi uns 15 a 20 metros e pressenti que ali era um bom local. O meu faro de pescador não falhou: foi jogar a minhoca na água e já fisguei um dourado cachorro. Como gritei e pulei de alegria! Foi maravilhoso demais pegar aquele primeiro peixe! Joguei o anzol de novo e peguei o segundo. Eu nem acreditava! A sensação era de que estava vivendo momentos de pura magia! 

Meu irmão veio e tomou o meu poço, dizendo: “Você não sabe pescar! Eu vou pescar aí!” Ele era bem maior que eu e se eu engrossasse, além de levar alguns safanões, não seria chamado outras vezes. Claro que eu “afinei”, obedeci e deixei o poço para ele. Fui ao local onde ele estava. Não peguei mais nada, mas a vitória já era minha! Cheguei em casa radiante, com o troféu na mão, podendo mostrar os dois peixes e contar a história para o pai. Ele profetizou: “Você será um grande pescador!” Acho que ele acertou! Oh felicidade!

Muitas vezes íamos pescar lambari. O material de pesca era comprado na Casa Japonesa, próxima ao rio. Só tínhamos um único anzol, ou seja, o da vara. Não havia um de reserva! Se enroscasse, pulávamos na água para desenroscar. Normalmente pescávamos do lado de baixo da represa. Havia um “ladrão” antes da turbina por onde a água excedente passava formando uma pequena cachoeira. Ali dava muito lambari. Quando chovia, a água ficava barrenta e então só dava bagre e mandi. A isca, para qualquer peixe, era sempre minhoca. 

Na represa, formada para abastecer a turbina geradora de luz para a cidade, havia muito aguapé e daí pescávamos de peneira. Normalmente pegávamos o peixe espada, também conhecido como morenita ou tuvira. Em dois enfiávamos a peneira debaixo do aguapé e a erguíamos; um terceiro tirava o aguapé e os peixes ficavam na peneira. De vez em quando aparecia um bagre ou mandi. Lambari era muito difícil de pegar na peneira. Eles fugiam quando nos aproximávamos. 

Festa mesmo, era quando, na peneira, havia uma piramboia (muçum, enguia, também chamada de peixe cobra, por parecer com uma). É lisa e difícil de ser contida nas mãos, por isso corríamos para onde havia areia fora da represa. Com areia nas mãos era fácil de pegá-la. De cor preta, ficava branquinha depois que tirávamos as tripas e jogávamos água quente em cima, raspando com uma faca. Era muito saborosa. Recentemente descobri que é uma excelente isca para pegar pintado.

Em torno de um quilômetro para baixo da turbina havia um ótimo lugar para tomar banho. O local era conhecido como “pinguela”, devido a uma árvore caída e atravessada no rio, que possibilitava o trânsito a pé de uma margem para a outra. Quando íamos tomar banho ali, sempre víamos um cardume de curimbas. Este tipo de peixe é muito difícil de pegar com anzol, porque ele chupa a isca sem morder.

Para ir até a pinguela descíamos a avenida até a última rua antes do rio. Na esquina, do lado direito, estava a Casa Japonesa; dobrávamos à esquerda e íamos até o fim, onde na esquina do lado esquerdo residia a família Gehring. Era uma casa grande de madeira com várias janelas e de cor verde. Continuávamos pelo lado da serraria do Sr. Carlos Antonio Gehring, seguindo transversalmente em direção ao rio.

Do outro lado do rio, margem direita, estava a propriedade do Sr. José Raimundo. Ali trabalhava a família de Pedro Agostinho Arraes e Maria Vitória do Nascimento. O filho Agostinho Pedro Arraes, que mais tarde se tornou um famoso judoca e professor de judô, passava pela pinguela todo dia para ir à escola. Segundo o Agostinho, não se tem notícia de que alguém tenha caído no rio ao passar pela pinguela, com o detalhe de que não havia um corrimão.

Recordo que um pouco para cima, do outro lado do rio, havia uma família oriunda da Checoslováquia. Meu pai tinha uma grande amizade com o chefe daquela família. Guardo na memória uma conversa do meu pai com o velho tcheco sobre a final da copa do mundo de 1962, quando o Brasil se sagrou bicampeão ao vencer a final justamente contra a Tchecoslováquia. Masopust havia feito 1 a 0 para os tchecos, mas Amarildo, Zito e Vavá viraram o jogo para 3 a 1 a favor da seleção canarinha e o Brasil se tornou bicampeão mundial.

Em relação ao clã tcheco, recordo também do Bodalírio Constantini, que era casado com uma das filhas do casal tchecoslovaco e era poceiro, ou seja, furava poços e fossas. Um dia teve a infelicidade de morrer soterrado devido a um desbarrancamento no poço que estava cavando. Por ser uma pessoa muito querida, causou grande comoção na pequena cidade.

Um dado interessante é que - segundo a minha memória - durante o período da nossa infância não morreu afogada uma criança sequer, na represa e no rio Tigre. Por que será? Certamente o anjo da guarda nos protegeu muito bem! Em casa, a nossa mãe, além do “Santo Anjo”, nos ensinou a rezar uma oração bem curtinha: “Meu anjinho, meu amiguinho, me leve sempre pelo bom caminho”. 

Se recordo as travessuras e loucuras que fazíamos no rio, percebo que, sem dúvida alguma, os anjos da guarda nos protegeram. É só pensar no atrevimento e irresponsabilidade da “molecada” ao pular naquelas águas, de cima do monte de pó de serra, para se ter certeza. No fundo do rio havia paus que foram jogados junto com a serragem vinda da serraria. Era um perigo medonho, mas nunca aconteceu nada. Por que será? Sorte ou proteção divina?

Era encantador ficar observando as jaçanãs, que chamávamos de marrequinhas, andando sobre os aguapés. Essa linda ave de bico amarelo, peito preto, costa marrom e asas, quando abertas, de cor amarela clara - quase branca, me fascinava. Minha vontade era armar uma arapuca para pegá-las e poder levá-las para casa. Infelizmente de vez em quando aparecia um caçador e as matava. Com isso a natureza perdia um pouco do seu encanto, da sua beleza, alegria e esplendor.

Mas as minhas idas ao rio não foram só alegrias, também aconteceram alguns acidentes. Vou contar apenas um, sucedido em janeiro de 1965. Estávamos voltando do banho e passando por uma erosão feita pelas enxurradas que desciam pelas ruas da cidade. Era uma valeta enorme tanto de largura como de profundidade. Não me lembro quem estava caçando, mas o tal sujeito deu um tiro numa cachopa de abelhas. Todos corremos. Eu comecei a correr olhando para trás, quando me virei, bati com a testa na quina de uma grande vigota que estava atravessada na valeta. Fez um talho na testa e não parava de sair sangue. Precisava dar pontos, mas meu medo de injeção era e é maior que o estrago provocado por aquela grande valeta. Tenho verdadeiro pavor de levar uma espetada de agulha. Não importa o tamanho da agulha, nem se é anestesia, vacina ... eu evito o máximo que posso. Para obturar um dente sempre digo que é para fazer sem anestesia. 

Naquela ocasião, meus pais, irmãos e mais alguns conhecidos tiveram um trabalhão para me levar até o hospital. O experiente médico da cidade, Dr. Olivier Grandene, meu padrinho de crisma, estava de férias. No hospital, os dois estudantes de medicina, que estavam estagiando, ficaram apavorados! Ninguém conseguia me segurar. Recordo que na sala estavam meu pai, minha mãe, meus dois irmãos mais velhos, Valdir e Valdomiro. Também o meu tio, Narciso Santin, os dois estagiários e mais algumas pessoas que foram chegando. Tinha apenas 12 anos, mas eu parecia o Sansão; minha força e resistência era tamanha, que eles não conseguiam me imobilizar. Por fim chegou o Sr. Leitner, que era gordo e bem barrigudo. Ele deitou em cima dos meus joelhos e me imobilizou. Daí o estagiário, que usava um bigodinho, conseguiu anestesiar. Levei seis pontos!

Teria ainda muitas histórias e peripécias para contar, creio que estas, por hoje, são suficientes para ajudar o leitor a recordar sua própria infância. Termino com uma poesia que contém muitas coisas com as quais me identifico. Não é do Patativa do Assaré, mas muito semelhante à dele.


Menino de rua 

 

Menino de rua 

Que pinta, que esbanja, que rouba laranja no meu quintal 

Que atiça o cachorro, que joga bolinha 

Que engraxa sapato, que xinga a vizinha 

Que vende jornal 

Menino de rua 

Moleque vadio que fuma 

Que nada no rio em dia de sol 

Que grita, que briga 

Que faz arruaças, que estraga telhado 

Que quebra vidraças com seu futebol 

Menino de rua 

Que foge da escola 

Que forma seu bando de gente gabola no becos sem luz 

Que diz nome feio, que gospe e conjus 

Que segue o palhaço 

Que mente, que jura com dedos em cruz 

Menino de rua 

Que pisa na lama, que senta no chão, que suja as calças 

Que põe apelidos 

Que busca recados, que leva bilhetes por vinte centavos 

Menino de rua 

Magrinho e briguento que quase não come 

Que dorme ao relento sem nada queixar 

Que vai ao cinema, que banca o mocinho 

Que canta e assobia, que sofre sozinho, que vive sem lar 

Menino de rua 

De brecha na testa, de calça rasgada 

Que em dia de festa a gente não vê 

Que joga baralho, que pula, que salta 

Que brinca de pique 

Menino Peralta 

Invejo você! 

Lucia Javorski Bara[ [1] ]

 

Itaituba, 22 de fevereiro de 2023.

 


 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

“De Nazaré pode sair algo de bom?” - 1




“De Nazaré pode sair algo de bom?” - 1

UMA EXPERIÊNCIA NO PRESÍDIO DE ITAITUBA


Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

 

Certo dia recebi um convite para representar a parte católica numa celebração ecumênica no presídio da cidade de Itaituba. Não fui informado sobre quantas e quais outras igrejas tinham sido convidadas. Sempre que posso, aceito com muita alegria convites para participar de celebrações ecumênicas. Rezar juntos é maravilhoso e sempre faz bem! Jesus nos dá o fundamento: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18,20). Nessas celebrações sempre estamos reunidos em nome de Jesus.

O presídio, cujo nome oficial é Centro de Recuperação de Itaituba, foi construído há mais de 25 anos com o objetivo de abrigar 190 detentos. Porém, segundo notícias veiculadas na imprensa local, normalmente está lotado e algumas vezes com mais de 400 reclusos. A superlotação provém do fato de que a casa prisional recebe presos dos municípios de Aveiro, Itaituba, Jacareacanga, Novo Progresso, Rurópolis e Trairão.

Todo ano a imagem de Sant’Ana é levada ao presídio antes dos festejos da padroeira. Por isso, estive nesse lugar algumas vezes acompanhando a imagem. Normalmente passamos pelos corredores e entramos nas celas. Porém, uma vez isto não nos foi possível entrar nas celas e nem sequer passar pelos corredores devido ao alto risco de uma rebelião. Fomos levados para a parte de cima das celas e de lá podíamos ver os presos e eles também conseguiam nos ver. Fomos cantando, rezando e mostrando a imagem. Os presos nos olhavam um pouco assustados sem entender o que estava acontecendo. Ao verem a imagem, alguns faziam o sinal da cruz e outros demonstravam uma cara de poucos amigos. 

Há uma ala feminina, mas sempre com poucas detentas. Numa das vezes, uma presa se ajoelhou, rezou, pediu uma bênção implorando para que eu rezasse por ela. No dia da festa de Sant’Ana, dia 26 de julho, ela participou da procissão e conversou comigo dizendo que tinha recebido um indulto e que iria recomeçar a vida. Seis anos depois ela me encontrou na rua e me perguntou se eu a reconhecia. Tive que responder que não. Ela me disse: “Sou aquela presa que o senhor rezou por ela. Me regenerei e constituí uma nova família. Estou muito feliz!” Naquele momento senti uma grande alegria e elevei a Deus uma oração de agradecimento. O Papa Francisco tem razão ao afirmar: “Antes de tudo lembremo-nos de que a conversão é uma graça, portanto, deve ser pedida a Deus com força”. O Sucessor de Pedro também explica que a conversão “Na Bíblia, significa primeiro mudar a direção e a orientação; e depois também mudar a maneira de pensar. Na vida moral e espiritual, converter meios de passar do mal ao bem, do pecado ao amor de Deus”. Aprofunda afirmando que a conversão “envolve a dor pelos pecados cometidos, o desejo de se livrar deles, o propósito de excluí-los da própria vida para sempre. Para excluir o pecado, é preciso também rejeitar tudo o que está ligado a ele: a mentalidade mundana, a superestimação do conforto, do prazer, do bem-estar, das riquezas. O Pontífice conclui: "Nós nos convertemos verdadeiramente na medida em que nos abrimos à beleza, à bondade, à ternura de Deus. Então deixamos o que é falso e efêmero, para o que é verdadeiro, belo e dura para sempre" (Angelus – 06 de dezembro de 2022).

Desta vez quando cheguei em frente ao presídio, havia ali na rua um grupo de evangélicos. Fui conversar com eles e me apresentei. Disseram-me que eram da Congregação Cristã no Brasil. Um deles me pareceu ser do sul do país, por isso perguntei de onde ele era. 

- “Do Paraná!”, respondeu-me. 

- “De que cidade?” 

- “De Maristela!”

- “Maristela, distrito de Alto Paraná?” 

- “Sim”.

Espontaneamente brinquei: - “Mas de Maristela pode sair coisa que presta?” 

Ele não gostou, me olhou com um olhar ameaçador, fechou a cara e não respondeu, dando as costas pra mim. Tentei amenizar dando uma risadinha e dizendo: - “Só sai coisa boa de Alto Paraná ou Paranavaí!” Não teve jeito: continuou com a cara amarrada. Não me preocupei, porque sabia que tudo se resolveria na celebração.

Entramos, conversamos com os dirigentes e funcionários do presídio que foram muito amáveis e manifestaram alegria pela nossa presença. Ofereceram-nos um café com lanche.

A celebração foi realizada no pátio externo ao ar livre. O motivo era a formatura de um grupo de detentos que tinham feito um curso de reciclagem de plásticos. Estavam presentes também o juiz e o promotor. Fui o primeiro a ter a palavra. Usei como texto bíblico  a narrativa do encontro de Jesus com Natanael (Jo 1,29-51). Ao comentá-lo, fiz uma atualização do versículo 46, ou seja, a pergunta de Natanael a Filipe: “De Nazaré pode sair algo de bom?”, interrogando sobretudo os presos mas também as pessoas ali presentes: “Porventura, pode sair algo de bom deste presídio?” Foi um silêncio total! Passei o olhar sobre todos os detentos e concluí com voz potente e segura: “Claro que pode! Vocês em breve vão sair daqui e vão recomeçar a vida. Por isso fizeram este curso de reciclagem. Só depende de cada um de vocês iniciar uma nova fase na vida para não ter que voltar para cá”. Continuei estimulando-os a aproveitarem a liberdade, ao saírem da prisão, para começarem uma vida nova. Citei como exemplo aquela presa que me pediu a bênção, que se regenerou e estava muito feliz. Recordei o que em geral a população pensa em relação aos presos. Repeti a frase de Natanael que duvidava que de Nazaré pudesse sair algo de bom. Acentuei: “De Nazaré saiu Jesus, o nosso Salvador!” Em seguida me dirigi ao homem de Maristela: “Pois é, lá fora eu brinquei com nosso irmão lá do Paraná perguntando se podia sair coisa que presta de Maristela. Quero lhe dizer que eu tinha em mente este versículo do evangelho. Eu não queria desprezar Maristela, o simpático e progressista distrito de Alto Paraná.” O homem, que estava ainda com a cara amarrada, abriu um lindo sorriso. Viramos amigos! Temos nos encontrado várias vezes. Sempre conversamos e comentamos sobre nossas idas ao Paraná. Eu gosto de me encontrar com ele e sinto que ele gosta de se encontrar comigo.

Aí está uma prova de que quando rezamos juntos, nasce amizade, alegria e o mais bonito: passamos a nos tratar como verdadeiros irmãos!

 

Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.

02 de fevereiro de 2023.

Festa da Apresentação do Senhor

 

 

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