PESCAR NO SAPUCUÁ: UMA EXPERIÊNCIA INESQUECÍVEL
“E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria... Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua”.
Pescar é sempre encantador, principalmente quando se pega muito peixe. A primeira pescaria que fiz na Lagoa de Sapucuá superou as expectativas. Não há Pantanal, rios Mogi Guaçu, Piracicaba, Coxim ou .... pra bater este lago de Oriximiná.
Não fique pensando que o que vou contar aqui é só uma patacoada ou uma potoca de pescador, porque - como escreveu o grande Guimarães Rosa: “na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe” – vamos temperar esta crônica com um pouco de tudo e alargar as margens o máximo possível para caber tudo, inclusive algumas mentiras, pra deixar o texto mais interessante e agradável.
Quando o Pe. Jaime Gato me convidou pra pescar na Lagoa de Sapucuá, perguntei: “E essa lagoa existe no mapa?” Retorquiu: “Claro que sim! Minha família era de lá. Tenho ainda muitos parentes por aquelas bandas”. Minutos depois me enviou este mapa:
No canto direito em cima está a cidade de Oriximiná
Como se vê, a Lagoa de Sapucuá é um grande lago no município de Oriximiná, PA, suas coordenadas: 1°49'23"S 56°7'55"W. Também leva o nome de Lago de Sapucaia. Os moradores simplesmente falam “Sapucuá”, sem diferenciar se é lagoa ou lago, nem eu sabia dizer qual é a exata diferença. Mas como sou curioso, fui pesquisar e encontrei: “A principal diferença entre um lago e uma lagoa é o tamanho. Um lago é um corpo de água maior, enquanto uma lagoa pode ter alguns metros a alguns quilômetros de diâmetro. No entanto, não há consenso entre os cientistas sobre a verdadeira distinção entre um lago e uma lagoa”
Oriximiná, a antiga Uruá-tapera, foi fundada pelo padre José Nicolino Pereira de Souza, em 1877, mas os primeiros habitantes já chegaram naquela região no início do século XIX com o aparecimento de quilombos/mocambos ao longo do rio Trombetas. Em 1886, Uruá-tapera foi elevada ao status de freguesia, com o nome de Santo Antônio do Uruá-Tapera. Em 1894 a freguesia foi transformada em vila com a mudança de nome para Oriximiná. Finalmente adquiriu a condição de município, em 24 de dezembro de 1934. Sua população atual é de 68.294 pessoas (Censo 2022).
Não muito distante dali, deveria estar o “Reino das Amazonas”, as mulheres guerreiras. Foi no rio Amazonas, um pouco pra cima da foz do rio Trombetas e perto do rio Nhamundá, que as lendárias guerreiras possivelmente foram avistadas pela comitiva de Francisco de Orellana: "Aquí dimos de golpe en la buena tierra y señorío de las Amazonas", escreveu Frei Gaspar de Carvajal, o cronista da viagem, em 1542.
A viagem de ida
Saímos, Frei Marcos Bezerra e eu, de Itaituba, dia 17 de setembro, passando o rio Tapajós na balsa das 9h, seguindo rumo a Santarém, onde iríamos tomar a balsa para Oriximiná. A travessia do Tapajós demorou uns 45 minutos porque o rio estava muito baixo, devido à grande seca na Amazônia. As praias no meio do rio, em frente de Itaituba, já estavam lotadas de gente, que iriam passar o dia ali. Havia várias barracas de vendedores de comida e bebidas bem como muitos guarda-sóis armados. Um espetáculo lindo de se ver.
Ao chegar no Campo Verde (Km 30 na rod. Transamazônica) fomos até a casa dos padres. Lá nos esperava o Maurílio Caldeira de Novo Progresso. Após passarmos seus apetrechos de pesca para minha camionete, seguimos até Rurópolis, onde o Pe. Jaime nos esperava com um saboroso almoço. Após meia hora de descanso, seguimos viagem para Santarém pela BR 163.
Um pouco antes do Cipoal, paramos na loja do Engenho-Garapeira Gatti, que fabrica uma excelente cachaça artesanal, a famosa Cachaça Gatti. O Maurílio comprou duas garrafas: uma envelhecida em barril de Amburana e outra no de Jequitibá.
Ao chegarmos em Santarém, fomos até o Convento São Francisco. Frei Marcos, que iria visitar sua mãe no Ceará, ficou na casa religiosa.
Entre nós não havia um mineiro, mas como não queríamos perder o trem, ou melhor, a balsa ou Ferry-boat MOÇADA 2012, fomos ao porto três horas e meia antes do horário. Foi fácil estacionar a camionete e armar nossas redes. Foi chegando gente, foi chegando gente e a balsa ficou lotada tanto de passageiros como de carros.
Saímos exatamente às 19h30, como o previsto. Pessoalmente eu estava muito preocupado e com a sensação de que o padre Jaime nos tinha enganado quanto à possibilidade de pegarmos muito peixe. Porque durante a viagem Rurópolis-Santarém ele começou a falar que podia não ter peixe, porque estava muito seco, porque a lua não estava boa, etc. Quando manifestei a minha preocupação, ele respondeu: “Você não escutou o Pe. Belarmino do Jamanxim dizer que ele trabalhou com as comunidades do Sapucuá e que lá dá muito peixe?” Respondi que sim, mas arrematei: “Ele deve ser um outro papudo, como você. Só vou acreditar vendo!”
A minha preocupação de que o Sapucuá seria ruim de peixe aumentou, quando escutei um pescador de São Paulo dizendo que no Sapucuá não dá peixe e que o muito que pegaríamos seriam alguns tucunarés. Ele estava com uma turma e iriam pescar no alto rio Trombetas, onde dá peixe e dos grandes. Fariam só pesca esportiva, ou seja, pegar, tirar foto e soltar.
No amanhecer do dia chegamos em Oriximiná. Ao desembarcar, a primeira coisa que fizemos foi achar um local para tomar café e comer algo. Depois fomos esperar o barco que iria nos levar até o Sapucuá. Colocamos todas as nossas coisas no barco e fomos deixar a camionete na casa paroquial. Conversamos um pouco com os padres, tomamos um café e depois nos dirigimos a pé até o barco.
Oriximiná
Na Lagoa de Sapucuá
Zarpamos sob o comando do piloto Aluísio Lima. A viagem foi muito serena e tranquila, apesar do calor escaldante.
Enquanto íamos no barco, muitos pensamentos e lembranças afloraram em minha mente. A imaginação ficou aguçada. Lá pelas tantas comecei a refletir que aquela água tranquila do Sapucuá é muito mais do que sua simples composição química de H20 com toda sua riqueza aquática e vegetal. Que é rica também de muitas histórias dos ribeirinhos que viveram e vivem em suas margens desde o tempo dos zagais. Indígenas, desde tempos imemoriais, pescaram ali. Quantos livros de histórias de pescador podem ser escritos? Quantas pessoas tiraram e continuam tirando o seu sustento da lagoa? Quantas pirogas e canoas singraram por suas superfícies para a pesca e transporte? Quantos segredos guardados ou descobertos à beira da lagoa? Quantas histórias de botos? de amor? ou mesmo de tristezas? Quantos morreram nas tempestades repentinas que caem sobre o lago? ... Eh, o Sapucuá é bem mais do que H20 represada! Estas e outras reflexões levaram-me à convicção de que pescar ali seria algo a mais do que pegar peixe ou descansar, seria fazer uma grande experiência de convivência humana. Imaginar que aquela semana poderia ser “a minha hora e a minha vez” deu-me um conforto interior muito grande.
Mas o lago também me fez recordar do Lago de Genesaré, onde aconteceram as duas pescas milagrosas (Lc 5,1-11; Jo 21,1-14) e às margens do qual Jesus chamou Pedro, André, Tiago e João. Como não exultar de alegria e louvar ao Pai, como fez Jesus? “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mt 11,25-27).
Finalmente, após quase três horas de viagem, chegamos à Casa Santa Cruz. Ficamos arranchados na casa do Sr. Sávio Garcia, primo do Pe. Jaime, à beira do Sapucuá. Ele mora em Oriximiná e tem ali um comércio de secos e molhados. Quem cuida da venda Santa Cruz é o Sr. José Gato, que também é primo do Pe. Jaime. Ele é casado com a Andrea, merendeira da escola.
A casa fica no alto de uma ribanceira. Subir e descer aquela ladeira foi uma verdadeira “prova dos nove” para minha resistência devido os meus 100 kg e os quase 71 anos. Por falar em “prova dos nove”, que saudade dos tempos do curso primário no Grupo Escolar Arthur Bernardes, na minha cidade natal, Nova Londrina, no estado do Paraná! Naquele tempo se aprendia a fazer a “prova dos nove” para conferir se uma operação de adição ou subtração estava certa. Me lembro bem como se fazia e ficou na minha memória a expressão “noves fora”. Como é bom recordar o período da infância e dizer: “Eita tempinho bom aquele!”.
Se a subida é braba, quando se chega em cima, a vista é maravilhosa. Passei horas contemplando aquela paisagem. Bem em frente há uma pequena ilha com as praias já aparecendo. O amanhecer é um espetáculo à parte. Ficar apreciando o movimento das voadeiras e rabetas passarem é encantador.
Quando chegamos encontramos um professor da escola municipal, que estava furioso. O motivo é que não estava havendo aulas, porque tinha acabado o combustível para o transporte dos alunos. Mesmo não havendo aulas, os professores são obrigados a marcar presença na escola e depois em janeiro vão ter que repor as aulas não ministradas por causa da falta de combustível. Há coisas que só acontecem no Pará!!!!
A cozinheira Adriana nos preparou um delicioso almoço: canja de galinha e mujica de tambaqui. Mujica é uma espécie de pirão. Comemos até não poder mais. Depois o que nos restou foi fazer o que os animais fazem após encherem a barriga: dormir. Atamos nossas redes e fizemos uma bela sesta. O calor estava de rachar, mas havia uma brisa refrescante que nos possibilitou uma justa e prolongada soneca.
Após às 17h fomos pescar. O pirangueiro se chamava Wanderson. Um rapaz muito simpático e sorridente, mas só nos levou em pontos cegos, ou seja, onde não tinha peixe. Pegamos apenas uma traíra, duas piranhas e um aruanã. Menos mal que a traíra serviu de isca no dia seguinte.
Ao voltarmos comecei a provocar o Pe. Jaime:
- Você nos enganou dizendo que aqui tinha muito peixe!
- É que a lua não está boa!
- Nós não fomos pescar na lua, fomos pescar no Sapucuá, onde você disse que havia peixe! Cadê os peixes?, retruquei.
- Eu não queria falar, mas como você está me provocando, vou falar: vocês não pegaram peixe porque são uns panemas!
- E você, que nem quis ir pescar, o que é? Um super-panema?
O “diálogo” continuou com muitas risadas e provocações. A torcida hora apoiava um, hora apoiava o outro. Foram momentos de muita descontração e alegria.
Jantamos novamente tambaqui, só que desta vez assado. Delícia também!
Depois da janta foi a hora de ouvir histórias do lago, de botos, naufrágios, etc. Fiquei impressionado com o número de naufrágios. As tempestades surgem de uma hora para outra, as ondas viram os botes ou voadeiras e até mesmo barcos. Muitos corpos nunca foram encontrados.
Uma forte tempestade
Naquela primeira noite, antes do amanhecer, tivemos uma amostra da força dos ventos e como são as tempestades ali. Durante toda a noite relampeou e trovejou. Antes da aurora, começou a chover com pouco vento. Era uma chuva forte. Após mais de meia hora a chuva deu uma pequena parada, mas o vento virou e se tornou uma forte ventania. Começou a carregar cadeiras e mesas. Tivemos que desatar nossas redes, porque a chuva voltou a se intensificar e o local onde estavam atadas ficou todo molhado. Felizmente a varanda era em forma de “L” invertido, cobrindo a frente e o lado da casa. Ficamos na parte do lado e assim a parede da casa nos protegia do vento e da chuva. Confesso que, quando vi as cadeiras voando e as mesas sendo arrastadas, fiquei com um pouco de medo. Pensei: só falta levar o telhado.
Após o café fomos pescar e pegamos vários peixes. Foram umas 20 cangóias e mais tucunarés, traíras e piranhas. Não eram peixes grandes, mas deu pra “se divertir”.
Chegamos esfomeados. Para o almoço, nos ofereceram pirarucu frito e canja de galinha. Novamente um autêntico pitéu! A comida típica dos ribeirinhos sempre é deliciosa.
À tarde pegamos só duas piranhas. Eram piranhas tamanho família, ou seja, grandes. Brincamos dizendo que tínhamos pegado dois tambaquis. Quando viram que eram piranhas, começaram a nos chamar de panemas. Panemas não, porque voltamos com duas piranhas e, não é conversa de pescador, chegamos a fisgar alguns peixes, mas os peixes sempre escaparam. Cada vez que escapava um, eu dizia que era o Wanderson que estava botando “olho gordo” em nós. Ele ria e dizia: “Eu não tenho esse poder todo, não!”
Para o jantar o Maurílio fez sashimi de piranha. Foi uma novidade para todos. Quem experimentou, gostou, porém, houve quem não teve coragem de comer o peixe cru. Azar de quem não quis, sobrou mais para nós.
Histórias de boto
Após o jantar, mais uma vez, começaram as histórias e farrombas. Também ali no Sapucuá, há vários causos de boto para justificar a gravidez de moças solteiras. De origem indígena, a lenda narra que o boto aparece, durante os festejos juninos, transformado num rapaz vestido de branco e com um chapéu. Com seu jeito galanteador e falante, o boto dança, bebe, se comporta como um rapaz normal e aproxima-se das jovens solteiras desacompanhadas para seduzi-las. Como é bom de lábia, convida a moça para um passeio no fundo do rio, onde costuma engravidá-las. Na manhã seguinte volta a ser boto, visto que o seu encantamento só acontece à noite. Daí deriva o costume de se dizer, quando uma mulher tem um filho de um pai desconhecido, ou não quer falar quem é o pai, diz que o bebê é "filho do boto".
Uma das histórias de boto que ouvi foi a do boto Juvenal. Surgiu quando um dos homens comentou sobre uma linda meninota, que passou de canoa com seu pai, que foi buscá-la na escola:
- Aquela menina está crescendo e ficando cada dia mais bonita. Ainda bem que o boto Juvenal não existe mais!
- O que esse tal de boto Juvenal tem a ver? Que boto é esse?, indaguei.
- Nos antigamente, quando aparecia uma moça solteira grávida, ela dizia que tinha sido enganada pelo boto Juvenal. Passaram-se vários anos até que descobriram que o boto era o fulano de tal (disseram seu nome completo). Como ele já morreu, o boto Juvenal desapareceu!
A história do boto Juvenal, que é contada e recontada constantemente, trouxe-me à memória uma frase do escritor John Steinbeck, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1962, em seu livro “A Pérola”: “E, tantas vezes foi contada esta história que se gravou na cabeça de todos. E como acontece com todas as histórias repetidas que ficam no coração dos homens, há coisas boas e más, coisas pretas e brancas, bens e males sem nada no meio”.
Às margens do Sapucuá há muitas outras histórias de botos, mas não escutei uma sequer mencionando uma “bôta” que enganou algum rapaz!!! Também não escutei histórias de sereias.
Por falar em sereias, aquelas belas e perigosas “peixas”, metade mulher e metade peixe, também são recheadas de lendas e histórias, só que em geral ligadas ao mar. Nas lendas, “avistar” alguma sereia seria mau agouro e possível sinal de naufrágio. Era crença de que quando ofendidas, podiam causar inundações e desastres. Também estiveram associadas ao pecado, vaidade e consideradas “bruxas”.
Homero, o grande e famoso escritor grego, viveu uns oitocentos anos antes de Cristo. Na obra, Odisseia, conta que Ulisses (ou Odisseu), após o fim da guerra contra Troia, iniciou sua viagem de retorno para casa, na ilha de Ítaca, situada no mar Jônico. Durante a viagem teve que passar ao lado de uma ilha habitada por sereias. Para poder ouvir o canto das sereias e não ser enfeitiçado por ele, pediu para ser amarrado ao mastro do navio. Os marinheiros e tripulantes se protegeram tampando as orelhas com cera. Assim conseguiram passar sãos e salvos pelas sereias.
É bom frisar que as sereias não são só ruins. Em algumas lendas e histórias, elas são gentis, capazes de fazer o bem, salvam náufragos. Também podem se apaixonar por homens e até se casar com eles.
No folclore brasileiro é identificada com a Iara, uma bela jovem que tem uma voz encantadora capaz de enfeitiçar os homens com seu canto. A Iara, também conhecida como Mãe d’Água, tem a capacidade de atrair homens e os levar para o fundo do rio.
Todas as tardes, após as aulas, o professor vai até a Santa Cruz, com sua filha Maria, uma menina de 13 anos, linda e muito simpática. Com seu jeito meigo e humilde, conquistou a todos e, pode-se dizer que é a verdadeira representante da beleza da mulher ribeirinha do Sapucuá. Provavelmente, se um mulçumano a visse, diria: vai ser uma huri!
Durante o jantar, o clima estava abafado e sem vento. Uma mulher disse que quando a lua se assenta, começa a ventar. Eram 19h30, a lua se assentou pouco antes das 21h. Logo começou uma brisa leve e depois um vento gostoso. A noite foi tranquila e sem tempestade ou chuva.
Diboga
Todos os dias pelas 6 da manhã, um verdadeiro capiau, conhecido como Diboga, varria a área coberta da casa. Nesta hora, eu sempre estava de pé enviando os parabéns para os aniversariantes do dia. O Pe. Jaime, que é mais folgado, ficava deitado na rede até mais tarde. O Diboga, cujo nome é Alaelson, enquanto trabalha, sempre é calado, nem um “bom dia” diz. Porém, respondeu ao meu bom dia.
Ele é irmão da Andrea e está separado da mulher. Quando bebe, apronta. Mas é um cara bacana e bem disposto. Inclusive me levou a pescar, mas também em pontos cegos. Só entende de pesca com malhadeira ou tarrafa.
Depois que acabou de varrer, contou que tinha colocado uma malhadeira durante a noite e pegado dois tambaquis e um pirarucu. O Pe. Jaime disse: “Vamos enganar o Maurílio. Vou dizer que nos levantamos durante a noite e pegamos os dois tambaquis e o pirarucu”. Quando o Maurílio, que dormiu no barco, chegou, o padre Jaime foi logo falando que tínhamos pescado os dois tambaquis e o pirarucu.
O Maurílio, que não é bobo, não é nada, desconfiou e disse: “Duvido! Como é que vocês pegaram esses peixes, se vocês não entraram no barco para pegar as varas?” – É, mentira tem perna curta!
Uma das belas coisas naqueles dias era acordar com um galo cantando bem pertinho e com o pipilar dos passarinhos. Bem ao lado da casa há um galinheiro. Fazia tempo que não tinha esta experiência. É muito prazeroso acordar e ser envolvido pelo clima do canto dos galos saudando a alvorada e pelo chilreado dos passarinhos dando as boas-vindas ao sol. Só quem tem esta experiência entende!
Quando se está no campo, longe das luzes da cidade, é maravilhoso contemplar o céu estrelado. Procurar o Cruzeiro do Sul, as Três Marias e outras constelações, mas desta vez o suprassumo foi, após uns 30 anos – creio – rever a Estrela d’Alva, que estava brilhando como nunca. Foi no amanhecer da quinta-feira. É chamada de estrela, mas na verdade é o planeta Vênus. Li recentemente que Galileu Galilei, em 1610, descobriu que este planeta tem as 4 fases como a Lua e que apenas pode ser visto quando passa pela fase de crescente ou de minguante. Aí está o porquê da Estrela d’Alva não ser vista todos os dias.
Antes do café, o pessoal começou a contar histórias e causos de cobras, que fazem parte da tradição oral dos ribeirinhos do Sapucuá.
Um dos presentes contou que um homem foi atacado por uma sucuri lá do outro lado do lago. Ele conseguiu escapar porque tinha dentes tão afiados como das piranhas. Por isso passou a morder a sucuri. Cada dentada era um pedaço que arrancava. Por fim matou a cobra só na dentada.
Eu não quis chamar a trucada pra seis, porque não queria envergonhar o homem, porém, aproveitei para contar a história da sucuri que atacou o pescador lá na barranca do rio Paraná. Ele estava tranquilo pescando, sentado num galho de uma figueira. Uma sucuri chegou de mansinho por trás, deu o bote e começou se enrolar em torno do homem. Ele foi esperto enchendo o pulmão de ar. Quando a cobra ia dar o aperto final, ele soltou o ar do pulmão, ficou mais fino e assim conseguiu escapar. A sucuri só conseguiu dar o aperto no ar.
À tarde fui pescar com o Diboga e o Maurílio com o Wanderson. Estava ruim demais. Nem mesmo isca conseguimos pegar. O Diboga jogou inúmeras vezes a tarrafa, a qual sempre voltou vazia. Quando não se pega nem com a tarrafa é porque está ruim mesmo. O Maurílio também voltou de mãos vazias. O Pe. Jaime nem saiu pra pescar. Preferiu ficar conversando com os parentes.
Projeto Berçário de Tracajás
Na quinta-feira pela manhã, fomos visitar o Projeto Berçário de Tracajás no Barreto, a saber, é um local onde os tracajás botam seus ovos.
Dona Alice Guerreiro é a proprietária e começou o trabalho em parceria com a Universidade Federal do Amazonas. Ela fazia todo o trabalho, recebia uma ajuda e mandava todas as informações (número de ninhos, de ovos, quantos chocaram, quantos soltaram no lago) para a universidade. Atualmente a universidade não ajuda mais. A dona Alice está arcando todas as despesas. Faz por puro idealismo. Um exemplo a ser seguido!
Quando chegamos estavam recolhendo ovos. Achavam os ninhos, cavavam, colhiam os ovos com muito cuidado, e os colocavam numa caixa de isopor, depois os levavam para a chocadeira. Varia muito o número de ovos em cada ninho. Vimos que cada ninho tinha em geral de 9 a 12 ovos, mas o Pe. Jaime achou um com 17. Segundo a dona Alice, encontra-se ninho com até 50 ovos. O Maurílio, que acompanhou a coleta por mais tempo, viu um ninho com 38 ovos. O que determina o número de ovos é o tamanho da tracajá. Quanto mais velha, mais ovos bota. Um dos grandes perigos é o jacuruaru (lagarto ou teiú) que ataca os ninhos para comer os ovos.
Segundo se comenta, os tracajás voltam para botar no local onde nasceram. Por isso voltam ali. Como são muitos os que sobrevivem, só aumenta o número deles a cada ano. Não sei se isto é científico ou não.
No ano passado recolheram ovos de mais de 2.700 ninhos. Soltaram mais de 24.000 tracajazinhos. Após o nascimento, os pequenos tracajás são sustentados por três meses e depois são soltos. Assim eles têm mais possibilidades de sobreviverem diante dos predadores.
Chegando no Projeto Berçário de Tracajás
rastros do tracajá
Ovos de tracajá
Chocadeira
A lenda da “Festa no céu”
Tracajás, cágados, tartarugas e jabutis são todos quelônios. Há quem diga que o tracajá e o cágado é mesmo quelônio. Seja como for, Guimarães Rosa, em seu conto “A volta do marido pródigo”, in Sagarana, apresenta a lenda da “Festa no Céu”, onde explica o porquê do cágado ter a carapaça feita de pedacinhos ou cacos soldados. Vamos à lenda na versão do grande literato:
E, no entanto, assim como não se lembrava do lugar das trepadeiras, não está pensando no sapo. No sapo e no cágado da estória do sapo e do cágado, que se esconderam, juntos, dentro da viola do urubu, para poderem ir à festa no céu. A festa foi boa, mas, os dois não tendo tido tempo de entrar na viola, para o regresso, sobraram no céu e foram descobertos. E então São Pedro comunicou-lhes: “Vou varrer vocês dois lá para baixo.” Jogou primeiro o cágado. E o concho cágado, descendo sem para-quedas e vendo que ia bater mesmo em cima de uma pedra, se guardou em si e gritou: “Arreda laje, que eu te parto!” Mas a pedra, que era posta e própria, não se arredou, e o cágado espatifou-se em muitos pedaços. Remendaram-no, com esmero, e daí é que ele hoje tem a carapaça toda soldada de placas. Mas, nessa folga, o sapo estava se rindo. E, quando São Pedro perguntou por que, respondeu: “Estou rindo, porque se o meu compadre cascudo soubesse voar, como eu sei, não estava passando por tanto aperto...” E então, mais zangado, São Pedro pensou um pouco, e disse:
— “É assim? Pois nós vamos juntos lá em-baixo, que eu quero pinchar você, ou na água ou no fogo!” E aí o sapo choramingou: “Na água não, Patrão, que eu me esqueci de aprender a nadar...” — “Pois então é para a água mesmo que você vai!...” — Mas, quando o sapo caiu no poço, esticou para os lados as quatro mãozinhas, deu uma cambalhota, foi ver se o poço tinha fundo, mandou muitas bolhas cá para cima, e, quando teve tempo, veio subindo de-fasto, se desvirou e apareceu, piscando olho, para gritar: “Isto mesmo é que sapo quer!...”
No almoço foi-nos oferecido tambaqui assado, em caldas e frito. Experimentei os três modos e não sei dizer qual estava mais gostoso, mas normalmente me apetece mais o peixe assado.
Pelas 16h saí pescar tucunaré com o Wanderson no currico. Conseguimos pegar oito tucunarés. Voltei pra casa realizado. Foi a última pescada.
Mas o encanto não foi só o ter voltado com os oito tucunarés, o arrebol estava sensacional: a linda imagem do sol se pondo, com seu maravilhoso avermelhado refletindo no lago, não podia oferecer espetáculo mais encantador. Infelizmente não pude fotografar por ter esquecido a máquina em casa, porém, não me esqueci das palavras de Mahatma Gandhi: “Quando admiro a maravilha de um pôr do sol ou a beleza da lua, minha alma se expande em reverência ao Criador”. Como não louvar e agradecer a Deus por tamanho espetáculo?
Por isso incluo aqui a bela oração com a qual o Papa Francisco termina sua Encíclica Laudato Si’:
Oração cristã com a criação
Nós Vos louvamos, Pai,
com todas as vossas criaturas,
que saíram da vossa mão poderosa.
São vossas e estão repletas da vossa presença
e da vossa ternura.
Louvado sejais!
Filho de Deus, Jesus,
por Vós foram criadas todas as coisas.
Fostes formado no seio materno de Maria,
fizestes-Vos parte desta terra,
e contemplastes este mundo
com olhos humanos.
Hoje estais vivo em cada criatura
com a vossa glória de ressuscitado.
Louvado sejais!
Espírito Santo, que, com a vossa luz,
guiais este mundo para o amor do Pai
e acompanhais o gemido da criação,
Vós viveis também nos nossos corações
a fim de nos impelir para o bem.
Louvado sejais!
Senhor Deus, Uno e Trino,
comunidade estupenda de amor infinito,
ensinai-nos a contemplar-Vos
na beleza do universo,
onde tudo nos fala de Vós.
Despertai o nosso louvor e a nossa gratidão
por cada ser que criastes.
Dai-nos a graça de nos sentirmos
intimamente unidos
a tudo o que existe.
Deus de amor,
mostrai-nos o nosso lugar neste mundo
como instrumentos do vosso carinho
por todos os seres desta terra,
porque nem um deles sequer
é esquecido por Vós.
Iluminai os donos do poder e do dinheiro
para que não caiam no pecado da indiferença,
amem o bem comum, promovam os fracos,
e cuidem deste mundo que habitamos.
Os pobres e a terra estão bradando:
Senhor, tomai-nos
sob o vosso poder e a vossa luz,
para proteger cada vida,
para preparar um futuro melhor,
para que venha o vosso Reino
de justiça, paz, amor e beleza.
Louvado sejais!
Amém.
Na sexta-feira, 22, o retorno, após o café, até Oriximiná foi tranquilo. Navegamos quase três horas. Aproveitei o tempo para repassar na memória a semana e fazer uma avaliação. Também procurei analisar se aquela semana foi “a minha hora e a minha vez”.
Se for observar a semana só em relação a pegar peixe, foi um fracasso. Pescamos poucos peixes! Porém, é bom frisar que sai mais barato comprar o peixe do que ir pescá-lo. Daí que o motivo de ir pescar não é só pegar peixe. Aprendi com meu amigo José Bassoni que numa pescaria o peixe é só um detalhe, detalhe importante, mas só um detalhe. Por isso, o pegar pouco peixe não nos impediu de regressar felizes e com vontade de repetir a experiência. Isso deixa entrever que há outros detalhes e coisas que também são importantes.
A convivência com os sapucuaenses foi marcante. As histórias que ouvimos, o acolhimento recebido, a visita ao Projeto Berçário de Tracajás no Barreto, a tempestade e a saborosa comida, ... permanecerão para sempre em nossas memórias.
Antoine de Saint-Exupéry tem razão quando diz: “Cada um que passa em nossa vida, leva um pouco de nós mesmos, e deixa um pouco de si mesmo. Há os que levam muito, e há os que deixam muito, mas não há os que não deixam nada...” Portanto, se não posso dizer que foi “a” minha semana, posso incluí-la como uma das semanas que podem ser consideradas “a minha hora e minha vez”, por isso inesquecível!
Dom Frei Wilmar Santin, O.Carm.
Setembro de 2023.