quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Dona Cesarina

 

Dona Cesarina com sua comadre Autevina



Dona Cesarina

 

 

Há certas pessoas que marcam as nossas vidas. O tempo passa, mas elas teimosamente permanecem em nossas lembranças. Uma das pessoas que, vira e mexe, recordo com carinho é uma antiga moradora da Vila Fanny, Curitiba, conhecida simplesmente como dona Cesarina. Toda vez que ela surge em minha memória, sinto uma sensação de paz, de alegria e de contentamento. Não consigo ficar sem dar pelo menos um sorriso.

Dona Cesarina era uma negra, neta de escravos, nascida na Lapa, PR. Sempre que se referia à sua cidade natal, falava com orgulho dos atos heroicos dos lapeanos, no “Cerco da Lapa”, referindo-se ao sangrento confronto que envolveu pica-paus (republicanos) e maragatos (federalistas), em 1894, durante a Revolução Federalista. Na ocasião tombou em combate o famoso General Carneiro. Mas seu grande orgulho mesmo era falar sobre a “Gruta do Monge”, localizada no Parque Estadual do Monge e que serviu de abrigo ao lendário monge João Maria, em meados do século XIX.

A primeira vez que ouvi falar da dona Cesarina foi uma história ligada à gruta. O frei Antonio Ferraz, que morava em Curitiba, me contou que os freis de Curitiba fizeram um passeio até a Lapa e visitaram a Gruta do Monge. Antes de irem, a dona Cesarina tinha recomendado para visitarem a Gruta do Monge, porque lá Nossa Senhora aparecia às pessoas que tinham fé. Ela disse que toda vez que visitou o lugar, sempre viu Nossa Senhora. Quando voltaram, ela perguntou se o frei Antonio tinha visto Nossa Senhora. Ele respondeu que não. Desiludida sentenciou: “Que vergonha! Hoje em dia nem mais os padres têm fé!”

Quando em janeiro de 1972 mudei para o convento dos carmelitas da Vila Fanny, em Curitiba, para fazer o noviciado, logo no primeiro domingo conheci a dona Cesarina. Já era uma pessoa idosa, não posso precisar a sua idade. Seu rosto transpirava a energia serena das almas fortes e tranquilas. Ela não faltava à missa um domingo sequer. Era uma figurinha carimbada na missa das 10h. Sempre chegava sorrindo e com a sua melhor roupa. Está na minha memória trajando um lindo vestido azul. Sempre brincávamos perguntado se ela estava procurando um noivo. Ela dava uma risada e dizia: “Eu não! Estou bem assim e não quero complicar a minha vida”. Um dia brinquei: “Nossa, dona Cesarina! Como a senhora está assanhada com este vestido azul!” Com bom espírito de humor e um olhar doce e meigo, ela retorquiu: “Se o frei está me achando assanhada, é porque está interessado, né! Quero dizer pro senhor que eu não estou interessada!” E soltou uma gargalhada. Naquele dia eu poderia ter ido dormir sem essa. Aprendi a lição!

Dona Cesarina nunca casou, mas teve uma filha chamada Ivone. Habitava numa pequena casa que ficava uma quadra e meia distante da igreja. Com ela moravam: sua irmã Maria José, cujo apelido era Tijé, o sobrinho Eugênio Barbosa e sua esposa Maria Rosa com os filhos Barbosa, Dirceu, Jussara e Maria Elisa. Seu sobrinho era muito trabalhador, porém, quando bebia perdia o controle. O problema era ele ficar um fim de semana sem beber. Portanto, essas bebedeiras do sobrinho se constituíam um dos “espinhos na carne” (cf. 2Cor 12,7) para a dona Cesarina.

Seus rendimentos vinham da lavagem de roupa “pra fora” que fazia em casa. Mas também contava com uma ajuda mensal de um médico chamado Dr. Alan, para o qual ela trabalhou como doméstica por muitos anos. Sem esta ajuda do Dr. Alan teria sido muito difícil colocar comida suficiente naquela casa em que 7 pessoas dependiam dela.

Durante quatro anos nós, carmelitas de Curitiba, compramos a comida pronta, da “Refeições Colonial”, que fornecia alimentação para funcionários de empresas. Sempre sobrava feijão, arroz, macarrão, etc. Jogar aquela comida fora, seria um pecado. Passamos a dar para a dona Cesarina. Está impregnada na minha memória a imagem dela toda feliz indo buscar a comida. 

Nas festas da Igreja, ela sempre se encarregava da salada. Com uma grande alegria e desejosa de prestar seu serviço à sua comunidade eclesial, ela passava o dia anterior à festa preparando a salada. Assim cumpria um dos grandes ensinamentos de Jesus: Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós, seja vosso servo. Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mt 20,26-28).

Na década de 1970-80, no mês de outubro, a Arquidiocese de Curitiba organizava anualmente uma grande romaria para o Santuário de Nossa Senhora Aparecida. A Paróquia Nossa Senhora da Conceição sempre conseguia lotar um ônibus com um grupo organizado pelo frei Aleixo. A dona Cesarina não falhava, era sempre a romeira mais animada e devota. 

Para pagar a passagem e hospedagem, ela ia colocando moedas numa lata de leite Ninho. Evidentemente, devido à inflação, quando chegava o momento de pagar, o dinheiro guardado na lata não era suficiente. Por sorte, várias pessoas generosas faziam “uma vaquinha” e pagavam a sua passagem. Assim anualmente, ébria de felicidade, ia para Aparecida contagiando a todos com sua simpatia e alegria.

Costumava levar frango com farofa e bolachas pra comer durante a viagem. Numa das viagens, uma senhora se incomodou porque a dona Cesarina estava sempre comendo e reclamou. Prontamente recebeu a resposta: “Eu como com minha boca e a senhora não tem nada com isso. Eu estou com fome e vou continuar comendo!”

Certo dia lhe perguntei: 

- “Dona Cesarina, quantas vezes a senhora já foi para Aparecida?” 

- “Vinte sete vezes!”, respondeu.

- “Mas já não está bom?”

- “Não, porque no ano em que eu não for, será o ano da minha morte. Se eu não for lá, como vou aguentar todos os sofrimentos da minha vida?”.

Ali percebi claramente a força da piedade popular na vida das pessoas pobres e simples. Em 1975 na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi – sobre a Evangelização no mundo contemporâneo, o Papa São Paulo VI chamava a atenção para a importância da religiosidade popular e esclarecia: “traduz em si uma certa sede de Deus, que somente os pobres e os simples podem experimentar; ela torna as pessoas capazes para terem rasgos de generosidade e predispõe-nas para o sacrifício até ao heroísmo, quando se trata de manifestar a fé; ela comporta um apurado sentido dos atributos profundos de Deus: a paternidade, a providência, a presença amorosa e constante, etc. Ela, depois, suscita atitudes interiores que raramente se observam alhures no mesmo grau: paciência, sentido da cruz na vida cotidiana, desapego, aceitação dos outros, dedicação, devoção, etc. Em virtude destes aspectos, nós chamamos-lhe de bom grado "piedade popular", no sentido religião do povo, em vez de religiosidade” (nº 48)[ [1] ].

Sobre peregrinações a santuários marianos, o Papa Francisco recomenda: “Aprendamos: quando há dificuldades na vida, procuremos a Mãe; e quando a vida é feliz, procuremos a Mãe para partilhar inclusive isto. Precisamos de ir a estes oásis de consolação e de misericórdia, onde a fé se exprime numa linguagem materna; onde colocamos as fadigas da vida nos braços de Nossa Senhora e regressamos à vida com a paz no coração, talvez com a paz das crianças” (Audiência Geral, 23/08/2023).

Uma vez fui em sua casa, encontrei-a agitada com um pedaço de pau na mão. Fiquei espantado e lhe disse:

- “Dona Cesarina, vim visitar a senhora e a senhora me recebe com um cacete querendo me dar uma camaçada de pau?”

- “Não, não quero bater no senhor não! Deus me livre de bater num padre! Valha-me Nossa Senhora Aparecida! Eu estou querendo matar uma cobra verde que apareceu aqui no quintal. Pra sorte dela e demorei pra encontrar este pau. Como ela é muito rápida, escapou”, prontamente explicou.

- “Mas Dona Cesarina, a senhora não sabe que matar cobra verde é um crime inafiançável? E se a senhora matar esta cobra, vai ser presa por 5 anos sem direito a ter um advogado?” 

Espantada, arregalou os dois olhos e, com um olhar de desdém e com uma cara manifestando desconfiança, me perguntou:

- “E por que matar cobra verde é crime inafiançável?” 

- “Porque tem que deixar a cobra amadurecer!”, retruquei.

Ela redarguiu num linguajar bem caboclo: “Quá! E cobra verde madróce?”

Como mencionei acima, a dona Cesarina já era idosa quando a conheci. Se olharmos a realidade de hoje em dia, o número de idosos tem aumentado muito. Felizmente a Igreja tem se preocupado com esta situação, por isso criou uma própria pastoral, a saber, a Pastoral da Pessoa Idosa. O Papa Francisco tem um carinho todo especial pelos idosos, tanto é que fez uma série 18 de catequeses sobre a velhice em 2022. Um ano antes já tinha instituído o “Dia Mundial dos Avós e dos Idosos”. Na ocasião da sua instituição, o Santo Padre mencionou a celebração da Festa da Apresentação de Jesus no Templo, que aconteceria dois dias depois, e citou os idosos Simeão e Ana que, “iluminados pelo Espírito Santo, reconheceram Jesus como o Messias” (Cf. Lc 2,22-40) e que “Eles recordam-nos que a velhice é um dom e que os avós são a ligação entre as gerações, para transmitir aos jovens a experiência da vida e da fé. Os avós são muitas vezes esquecidos e nós esquecemos esta riqueza de preservar as raízes e de as transmitir. Por esta razão, decidi instituir o Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que terá lugar na Igreja inteira todos os anos no quarto domingo de julho, na proximidade da festa dos Santos Joaquim e Ana, os “avós” de Jesus” [ [2] ] (Ângelus, 31/01/2021).

O Sucessor de Pedro tem sido coerente e todos os anos tem rezado, na Basílica Vaticana, uma missa solene no Dia Mundial dos Avós e dos Idosos. No primeiro ano de celebração deste Dia, Papa Francisco concluiu assim a sua homilia: 

Irmãos e irmãs, os avós e os idosos são pão que nutre a nossa vida. Sejamos agradecidos pelos seus olhos atentos, que se aperceberam de nós, pelos seus joelhos que nos deram colo, pelas suas mãos que nos acompanharam e levantaram, pelos jogos que fizeram conosco e pelas carícias com que nos consolaram. Por favor, não nos esqueçamos deles. Aliemo-nos com eles. Aprendamos a parar, a reconhecê-los, a ouvi-losNunca os descartemos. Guardemo-los amorosamente. E aprendamos a partilhar tempo com eles. Sairemos melhores. E juntos, jovens e idosos, saciar-nos-emos à mesa da partilha, abençoada por Deus”[ [3] ] (25/07/2021).

Pouca gente ainda se recorda da Dona Cesarina. Com o tempo a memória de sua existência está se apagando. Porém, ela não pode simplesmente ser descartada, merece ser lembrada como uma mulher forte e lutadora, deve ser reconhecida como uma verdadeira heroína e sua memória preservada, por isso, parodiando o grande locutor esportivo Fiori Gigliotti, carinhosamente concluo dizendo: “a Dona Cesarina ficará por todo o sempre incrustada na ternura e sinceridade do nosso cantinho de saudade”.

 

+ Wilmar Santin. O.Carm.

Itaituba, 15 de agosto de 2023.

Solenidade da Assunção da Virgem Maria



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24 comentários:

  1. Parabéns. Lindo texto ❤️

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  2. Linda reflexão Dom Wilmar.

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    1. A Gostei, Dom Wilmar! Continue escrevendo essas preciosidades!

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  3. Vera Lucia Ledur de Moura17 de agosto de 2023 às 15:37

    Frei Wilmar, ficou maravilhoso, acabei aprendendo um pouco mais sobre a vida da dona Cezarina

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  4. Dom.Wilmar que riqueza de história é esses detalhes deixa a nossa mente fluir e ao encontro da nossa Cesarina. Mulher determinada e de muita fé,sendo que guardava suas economias pra poder renovar sua fé e além de tudo fazer uma viajem. Dinamar Alves

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  5. Maravilhosa crônica Dom Wilmar. Parabéns pelo carinho à pessoa idosa

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  6. Muito bom o texto. Valeu a pausa para leitura.

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  7. Seu texto é maravilhoso Dom. É uma benção recordar e reconhecermos a importância das pessoas. Foi o que o senhor fez. A Dona Cesarina da minha vida era a dona Maria Preta. Ela era zangada, mas tinha um coração bondoso pois ela permitiu que minha mãe e meu pai construíssem uma casa ao lado da dela para sairmos do aluguel. Somos eternamente gratos a ela. Obrigada Dom!!

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  8. Seu texto é maravilhoso Dom. É uma benção recordar e reconhecermos a importância das pessoas. Foi o que o senhor fez. A Dona Cesarina da minha vida era a dona Maria Preta. Ela era zangada, mas tinha um coração bondoso pois ela permitiu que minha mãe e meu pai construíssem uma casa ao lado da dela para sairmos do aluguel. Somos eternamente gratos a ela. Obrigada Dom!!

    Att: Maria do Socorro Torres

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  9. Tudo leva a crer que o senhor aprendeu a gargalhar com dona Cesarina. Gargalhar é bom demais! O texto também.

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  10. Maravilhosa reflexão 🙏🙏🙏

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  11. Perfeita reflexão 🙏🙏🙏

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  12. Grande escritor 👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻

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  13. Um grande exemplo de fé, de coragem e fortaleza.

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  14. Muito boa! Parabéns Dom Wilmar... Cesarina, com todas as dificuldades, era Feliz por ser temente a Deus. Abraço, Maria Regiane

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  15. Linda reflexão Frei, revivi sua história através do blog!!! Abraços fraternos, Milena

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  16. Seria otimo, resgauatdar memorias tão lindas e instrutivas , em um livro.

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    1. Estou pensado em juntar as várias crônicas e histórias para fazer uma publicação.
      + Wilmar

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  17. Obrigado Dom Wilmar. Me lembrou das minhas Cezarinas Quilombolas, 23 comunidades dos Rios Trombetas, Erepecuru e Cumina'. Aprendi tanto com esse pessoal nos 9 anos que passei com eles.
    Abraço.
    Patricio.

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  18. Como sempre amo essas histórias. Exemplo de mulher guerreira q tanto nos ensina dona Cesarina Exemplo de fé

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  19. Gratidão, Dom Frei Wilmar! Seus escritos nos “transportam” ao tempo em que está sendo escrito e deixam-nos com vontade de que continue…. Maravilhoso texto!

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